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A expressão a seguir apresenta desvio linguístico? Analise-a com vagar: ‘O número de pessoas que diz ter Covid-19 é o dobro do oficial’

Se possui algum desvio da linguagem-padrão, fica a depender do questionamento de cada analista. Mas tem. E agora?

A questão está em dissecar como esse fato acontece, e qual o viés a servir de parâmetro para a amostragem dessa redação, que poderia alterar o aspecto semântico da frase.

O visitante percebe que a forma verbal referente ao núcleo do sujeito da oração principal (número) está no singular, mas não seria no plural, em se tratando do termo ‘pessoas’?

O defensor do escriba dirá, em argumentação surreal, que o singular se justifica por se referir ao termo ‘número’, vindo a ser o núcleo do sujeito da primeira oração. E pode? Poder, pode.

Resuma assim: ‘O número (…) que diz ter Covid-19 é o dobro do oficial’. Se for assim, será. Estará correta a flexão, e faz sentido.

Mas a semântica se concentra em ‘pessoas’, vocábulo no plural, que poderia ser substituído por ‘indivíduos, brasileiros, infectados’ etc.

O primeiro termo (‘número’) seria ‘quantidade, porção, percentual’ etc.

Antes de concordar, em parte, com o redator, e discordar, um pouco, de sua versão linguística, vamos ver uma frase usada pela Gramática Normativa tida como modelo de variante na discussão da Concordância Verbal.

Um bando de pássaros voou. Um bando de pássaros voaram (períodos simples).

Um bando de pássaros que estava a catar grãos de milho voou para o alto da ingazeira. Um bando de pássaros que estavam a catar grãos de milho voaram para o alto da ingazeira (períodos compostos).

O número de pessoas diz (…). O número de pessoas dizem (…). O número de pessoas que diz ter Covid-19 é o dobro do oficial. O número de pessoas que dizem ter Covid-19 é o dobro do oficial.

Começamos a vislumbrar o que pretendia mostrar o redator: o número… diz… é o dobro. Tudo no singular.

Mas a expressão não poderia, ou deveria, ter flexões diferentes no decorrer de sua estrutura? Essa a opinião deste comentarista.

O número de pessoas que dizem ter Covid-19 é o dobro do oficial. (Esta flexão seria a melhor opção?)

Quanto à análise sintática, temos período composto por subordinação formado de três orações: O número de pessoas é o dobro do oficial (oração principal); que dizem (oração subordinada adjetiva restritiva); ter Covid-19 (oração subordinada substantiva objetiva direta).

A adjetiva restritiva ‘qualifica’, de forma restrita, o termo pessoas; a oração subordinada substantiva objetiva direta é o objeto direto do verbo dizer (transitivo direto, no contexto). Dizem o quê? ter Covid-19 (que têm Covid-19).

Poderia parecer desnecessário mostrar a composição do período, mas se torna fundamental porque a expressão do redator é típica da linguagem culta, que tem nuanças específicas, daí ser o motivo do comentário de hoje.

Voltando a comparar, a oração principal do período ora comentado é similar ao mesmo caso de Um bando de pássaros voaram para o alto da ingazeira, (Um bando de pássaros voou para o alto da ingazeira), a oração principal. A que restou (que estava a catar grãos de milho) é oração subordinada adjetiva restritiva. Um período composto por subordinação formado de duas orações.

Mudemos a ordem das orações do período em discussão: É o dobro do oficial o número de pessoas que diz ter Covid-19.

No caso de ser considerado ‘correto’ gramaticalmente quanto à concordância verbal (o número que diz, isto é, o número diz; o número o qual diz ter Covid-19, o número que tem Covid-19), imediatamente, admitimos como núcleo do sujeito da oração principal número (o, de pessoas: adjuntos adnominais do núcleo do sujeito), desde que consideremos haver nessa redação uma metonímia, ou, uma sinédoque.

Assim, o redator segue e respeita o padrão da linguagem culta, considerado seu modus operandi de expressar e respeitado seu estilo. Por isso, é que disse, antes, ‘concordar em parte’ e ‘discordar um pouco’.

Uma obra que comenta aspectos do uso da Língua Portuguesa no Brasil, no tocante ao modelo-padrão, critica e condena a frase de um jornalista que redigiu: O Brasil chora a morte de seu ídolo (quando se deu o fato trágico da morte do nosso saudoso e inesquecível Ayrton Senna). O ‘comentarista’, assoberbado pela sua visão classista, analisou que ‘o Brasil chora’ é uma aberração, que não existe isso, que o País não chora etc.

Nesse momento, o discordante peca largamente, como outros querem ‘destituir’ a grandeza da língua com suas variantes e termos populares.

O Brasil chora é metonímia grandiosa, isto é, a Nação chora, o povo chora, as pessoas choram. Os admiradores do piloto lamentaram a morte do ídolo.

Buscando mais um viés, entende-se que a expressão contém metonímia (figura de linguagem que consiste na designação de uma coisa por outra pela sua afinidade; do todo pela parte; do continente pelo conteúdo etc.) porque cria a conotação, a poesia, e ‘O número‘ não é o numeral em si (19, 300, 2 ou 2.022, este não o ano, mas a soma de valores), daí termos essa figura imponente. O Brasil são as pessoas. Que frase você dá como exemplo de metonímia?

Se nada mostrou, fique com estas: Bebeu uma xícara de café (bebeu o café da xícara). Comeu um prato cheio (comeu todo o conteúdo do prato, que estava cheio… de abóbora com leite). Fumou um Hollywood. A velhice ri-se de alegria de seus netos aventureiros.

O escriba produziu um texto jornalístico que revela a sua performance, a sua visão, o seu estilo.

O comentário não é ‘o mero modo de contestar’, mas de encontrar facetas no uso do idioma pátrio por estes Brasis de nosso dia a dia.

Fechando o dito e o não-dito, para preencher o vão vazio do travesseiro de paina, que se esvai com o vento forte, corrijamos no bom sentido estas expressões ou frases:

O cliente tem direito a vale-compras. Resposta: O cliente tem direito a vales-compra (vales-compras). Os vales-gás deixaram de vigorar?

A vida o ensina que tudo vale a pena. Resposta: A vida lhe ensina que tudo vale a pena. A vida o ensina de que tudo vale a pena.

A Comissão lembra ainda, que os textos devem estar em tamanho 12. Resposta: A Comissão lembra, ainda, que os textos devem estar em tamanho 12.

A Comissão lembra, ainda que os textos devem estar em tamanho 12. Resposta: A Comissão lembra, ainda, que os textos devem estar em tamanho 12.

Obs.: O adjunto adverbial ou termo explicativo intercalado (no meio da frase) deve vir separado por duas vírgulas. O uso de uma única vírgula, antes ou depois da expressão, é indevido. O redator pode optar por não usar nenhuma vírgula: A Comissão lembra ainda que os textos devem estar em tamanho 12.

Abraços.

 

 

 

João Carlos de Oliveira

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