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Deus salvou ‘ele’. Deus lhe salvou. Deus o salvou. A linguagem varia conforme o nível cultural. A visão de cada um é que pode discriminar a forma não-padrão

Nosso dia a dia é repleto de exemplos variados de linguagem, em todos os níveis. Toda essa variação faz parte do nosso nível cultural, com a influência do momento (a emoção, por exemplo) ou o lugar em que estamos.

Inclui-se, nesses aspectos, até o fato de observamos com quem o interlocutor fala ou o que diz. Podem pesar a história de vida de cada um e sua formação escolar.

Mas as variedades são bem-vindas, e assim devemos remar o barco no lago em que estamos sem olharmos a personagem na lagoa famosa, em um iate, ou se alguém estaria numa simples canoa, numa ubá de origem indígena ou numa jangada nordestina.

Se alguém navega nos cânions do São Francisco, entre Sergipe e Bahia e redondezas, ou no lago Paranoá, em Brasília, isso não importa ou importaria, mas há quem olhe uma faceta e outra para poder dizer alguma coisa.

É muito bom o falar simples em nível que tanto o culto, como o não-alfabetizado, entenda.

Por outro lado, se a linguagem é escrita, os níveis podem variar.

A poesia, como deve ser, terá suas metáforas, as metonímias profundas, os pleonasmos arrebatadores, as lindas prosopopeias, e assim se vão todas as levas de figuras de linguagem mostrando sua cara, não exatamente no mesmo poema, nem que um poeta seja igual a outro.

Cada um veste sua camisa, e se a de Pedrito é colorida, que o seja, ficando diferente da azul-ferrete de Seu Serafim, o homem do campo, que agora trabalha num veículo que faz pequenas mudanças locais, e nada disso deveria ser motivo de chacota.

Um conto extraordinário tem seu jeito de ser. Ler O Corvo, de Allan Poe, é curtir uma linguagem magistral.

Uma crônica que retrate fatos da cidade, cheia de facetas, é algo para um bom pensante.

Uma obra infantil tem sua grandeza, e não será fácil para todo vivente ‘escrevinhador’ criar um texto legal para esse underground. Escrever bem para criança, e mais ainda para a criança moderna, que pode saber mais que se imagina, não será fácil.

As poesias de cunho infantil de Cecília Meireles são pérolas puras, tão bonitas quanto as esmeraldas, os topázios, os berilos, as safiras, e vamos longe com essa comparação.

Certo é que deixemos o povo falar. Às vezes, podemo-nos espantar com um termo, mas não seria do Regionalismo? Se não o conhecemos, cautela é tão bom quanto canja de galinha.

Se existe o jeito de ser de cada um, por isso, o jeito de falar.

“Na frente da minha casa, ‘tem’ um terreiro enorme para secar feijão.”

Seu Serafim conta um causo e não inventa nada, fala conforme aprendeu com seus ancestrais, e isso é admirável. Um dia cantou uma chula enquanto fazia parte de um mutirão (para a roçar a capoeira do sítio de Seu Otávio), e ele disse com entusiasmo que cresceu comendo ‘abóbora com leite’ e muitas vezes tinha uma umbuzada sem açúcar (por este custar os olhos da cara), mas levava a vida conforme se toca a boiada na estrada: com paciência e lentamente, montado na mulinha preta da cara branca, Mimosa, muito traquejada no manejo de animais; até sabe cavalgar a galope.

É isso, cara, a linguagem é rica, e temos a nossa como fulano tem a dele.

O momento é que pode nos exigir uma posição diferente, mas cada prato tem seu conteúdo, como cada árvore tem seus frutos, sua madeira e sua sombra.

As três frases desta introdução são, por si sós, originais. E dizem a mesma coisa: que fulano foi salvo por Deus.

A primeira, bem popular, contradiz a regra, mas é autêntica. A Gramática Normativa é que diz que ‘ele’ não pode ser objeto direto da frase; que, no seu lugar, deve vir ‘o’. Deus salvou-o. Da mesma forma ao se dizer: Deus o enviou.

A segunda é que cometeria deslize: altera a regência de salvar (verbo transitivo direto), usando-o como transitivo indireto, mas ‘lhe’ tem valor de objeto direto. E encontramos estas duas: Nós o chamamos. Nós lhe chamamos (ambas aceitas gramaticalmente), embora algum estudioso possa dizer que há solecismo quanto ao uso de salvar: o fato de este ser verbo transitivo direto (salvá-lo) ter sido usado como transitivo indireto (salvar-lhe).

Mas em outro momento, encontramos com abundância ‘Eu lhe vi na rua ontem’ no lugar de ‘Eu vi-o na rua ontem’.

A terceira é que seguiria a norma gramatical: Deus o salvou. Nós o fizemos. Vi-o passar aqui. Comprei-o.

Nesses ‘idos’ e ‘vindos’, ainda assim prefiro a primeira frase, talvez, de pessoa sem conhecimento gramatical, a ouvir o âncora de programa televisivo usar, em pouco tempo, ‘olha só’ cerca de 10 vezes. E segue com as pérolas: ‘na verdade; o que que acontece; estamos de volta ao vivo’ (repetidas vezes).

Para fechar o de hoje, vamos ver estas.

Se for usado Deus lhe salvou a vida, não há nenhum engano quanto ao uso de ‘lhe’. É que se trata de esse pronome ter o valor de pronome possessivo, equivalente a ‘sua’: Deus salvou a sua vida.

Rasgaram-te a camisa (Rasgaram a tua camisa). Feriram-me a honra (Feriram a minha honra).

Se for usado ‘Eu lhe chamei’ no lugar de ‘Eu o chamei’, a norma não trata que houve erro de regência verbal. E mais: ‘Eu lhe chamei a atenção’ não pode ser visto como lapso. Em Eu chamei a sua atenção e Eu lhe chamei a atenção, sua e lhe são iguais, com o mesmo valor sintático de adjunto adnominal do núcleo do objeto direto (atenção).

Ruim quando o redator se esquece do acento gráfico em correu, um substantivo, e não forma verbal. Fulano foi considerado pela Justiça o coautor de um crime. Nesse caso, tornou-se corréu (antigo co-réu), grafia que hoje, pela Reforma Ortográfica, perde o hífen, dobra-se a consonante e o acento agudo não pode ser esquecido (corréu). Em alguns sites que trazem notícias da Justiça, citando defensores e entrâncias, encontramos a grafia CORREU (que devemos entender), mas se trata de erro ortográfico.

Alguém teria dito Todos temos que ser igual. Todos ‘igual’? Todos temos que ser iguais. Da mesma forma, a frase Lutamos de igual para igual deve ser Lutamos de iguais para iguais (por serem dois ou mais, por isso, nós).

Um abraço.

 

 

 

João Carlos de Oliveira

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