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Continua, ainda, a dúvida quanto ao uso da crase. Em expressões cuja base seja vocábulo masculino, de jeito nenhum: a pé

A pé é apenas um chamariz. Não há crase em a bordo, a óbito, a prazo, a ele, a você.

Regra prática: onde couber ao, cabe à, e vice-versa. Troque o masculino pelo feminino. Fui ao clube. Fomos ao cemitério. Fui à missa. Fomos à fazenda.

Fui na loja, fui na festa são expressões populares. Fui à loja, fui à festa. Seria comum se dizer Fui no banheiro, mas… ao banheiro. Mas fui no caminhão, no burrinho.

São muitas as que aparecem em artigos, até contos e crônicas, como em poemas, com o uso da crase incorretamente.

Tive um texto classificado em um concurso literário, e fiquei honrado, ‘sastifeitinho’ da vida, todo contente, recebendo elogios de quem me conhece e sabe que fiz a inscrição no concurso. Uma honra.

Paguei uma taxa, e depois de longa espera, chegaram dois exemplares da coletânea. Uma obra bonita, capa atrativa ou atraente, bem editada, com impressão de alta legibilidade. Papel especial, e tudo o mais que possa dignificar um livro.

Corri para verificar em que página estaria meu texto, um conto mórbido intitulado O menino e a raposa, ficção de um fato que me aconteceu por volta de 1962, no distrito de Cachoeira Grande, município de Jacobina, nesta Bahia grandiosa, que não merece as apunhaladas de nenhum edil, daqui ou de qualquer urbe planetária. Todo Estado tem seu povo, sua história, seu folclore, e isso é que faz a diferença num país continental como o nosso, razão de o Brasil ser conhecido lá fora. Se fosse uma pequena nação incrustada em um cantão da Terra, talvez, não fosse destaque.

Por isso, não se merece o trabalho análogo ao da escravidão, não se merece a exigência de labor que deixe o obreiro famélico, em vez de o elevar à dignidade da vida, com todos os seus direitos pétreos respeitados.

Que toquemos os atabaques louvando as vitórias de quem luta no dia a dia, assim como o gaúcho usa bombachas e toma tererê, ou tereré.

Respeitemos as tradições de um povo, e não ofendê-lo com palavrinhas de baixo nível. Esse ato mesquinho não condiz com quem deveria respeitar os direitos de outrem. Ainda mais, um legislador, ou fiscal do Executivo municipal.

Sim, vou parar aqui, porque o recado é dado, que se deve dar aos ‘imponentes’ que falam qualquer coisa pelas culatras, sem cabeça nem Ética.

Então, no conto, relatei o momento de um menino atacado pela raposa hidrófoba: “Descalço e a pé, absorto por entre a ramagem ressequida que pede a gota d’água, o menino toca as reses para o curral a cumprir a faina diária: o pouco leite das pé-duras é a primeira refeição do dia”.

A ‘ramagem ressequida’ vem a ser vegetação muito seca da Caatinga, pela falta de chuva, com a pastagem de pouco alimento para as vaquinhas caatingueiras, por isso chamadas ‘pé-duras’. O trecho ‘a cumprir a faina diária’ significa um dever, a missão de apartar os bezerros para a ordenha manual do dia seguinte. Esse leitinho representa o primeiro alimento do dia, fervido ou cru, ingerido com farinha de mandioca, com batata ou abóbora bem cozida. Se ‘o café matutino’ era feito no curral, levava-se uma cuia com farinha e desleitava a craúna ali mesmo, com o leite quente do corpo da vaca magra, ingerido às pressas, para continuar a obra de tirar mais uns 10 litros de leite gordo; nada mais. Seriam 5 ou 6 vacas, todas sofridas.

A ordem era de meu pai: dando três da tarde, tinha que correr à fazendinha e ‘prender as vacas’, isto é, levá-las ao curral, apartar as crias de olhos graúdos, e soltar as vacas, que berravam, para no outro dia, bem cedo, fazer a ordenha num copo de flandres e despejar num caldeirão rústico de alumínio.

O cuidado para não tropeçar e derramar o líquido precioso. Se isso houvesse, a pisa era certa.

Esses concursos têm um pessoal chamado ‘profissional revisor de textos’, ou vem assim: “Preparação e revisão de textos” (sic), com o nome de alguém em seguida. Geralmente, vem o nome de pessoa do sexo feminino.

Mas essa profissional lê texto por texto e faz a ‘devida revisão’ se houver necessidade? Não se tem tempo para isso. São milhares de inscritos.

Hoje, usam um ‘aplicativo de correção de textos’, e surge uma opção como a mais viável, que adotam. No meu caso, usaram uma crase em ‘à pé‘, o que me dói como professor de Língua Portuguesa, com cerca de 40 anos de lida no Ensino Fundamental e Médio. Continuo escrevendo, como neste site, e tenho 11 obras publicadas, além de ser membro-efetivo da Academia Teixeirense de Letras, embora possa cometer lapsos. Advogado, rebusco o texto tanto, que pode ficar chato ou enfadonho, mas para que não apareçam ‘as pérolas gramaticais’ em peças vestibulares, as que iniciam um processo judicial.

A frase inicial do terceiro parágrafo do conto macabro, que narra o ataque de uma raposa doida e enlouquecida, diz “Plena a luz do Sol na tarde tórrida de Verão, e a Caatinga sofre (…)”, foi trocada para Em plena luz do sol, em uma tarde tórrida de verão, a Caatinga sofre (…). 

Não se vê que essa opção seja melhor que a frase do autor. A correção apontou-a como melhor? E é? Não há erro de Português, apenas a maneira de dizer, o estilo, que deve ser respeitado.

Essas correções intimidam o autor, afastam-no desses concursos. A não ser que o regulamento obrigue a essa opção, que não foi do meu conhecimento, e haja a necessidade premente de correção ortográfica, por exemplo.

Ou haveria a cláusula que determinaria: o autor do texto deve declarar se aceita o ‘aplicativo’ da correção de textos. Num poema, escrevi ‘rolinha fogo-pagô’, chamada carijó, que canta fogo-pagô, fogo-pagô, e a corretora passou para ‘fogo apagou’. Felizmente, fui avisado, e não aceitei. Pense em alguém usar esse critério numa obra de Guimarães Rosa. Matam todos os regionalismos.

Há outras alterações que desagradam. Num momento, disse no texto: “Como agir para livrar o menino do ataque da raposa louca-varrida? Vindo da capina de pequeno mandiocal, ao carregar o andor ao ombro, a ferramenta agrícola, no caminho costumeiro, ouve gritos e uivos por perto e corre para o local sinistro (…)”.  Trocaram ‘vindo da capina‘ por “Vindo da campina do pequeno mandiocal”.

O que é ‘campina do pequeno mandiocal’? Capina é o ato de capinar (limpar com a enxada), a capinação. Campina é ‘o campo amplo, pouco acidentado, sem árvores e coberto de vegetação herbácea; prado’, como consta de um léxico. A opção dada pelo aplicativo, que, certamente, não foi lida e comparada com a expressão do autor, nada tem a ver com a história.

O ‘andor’ é a enxada ao ombro, a penitência do trabalhador braçal, como se diz, como meu irmão, aos seus dezoito anos, vindo da capina. Seu caminho mais abaixo, e eu, no alto, a prender as vacas, fui atacado, e gritava: Raposa, desgraçada. Sai daqui!

Ele não sabia que eu estava lá, mas ouviu gritos e correu para o local. Viu a cena, e não titubeou. Com a enxada em riste, atacou-a e a matou. E disse: Não olhe… Esse sangue causa vertigem.

Obrigado por ter lido e analisado este texto.

 

João Carlos de Oliveira

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