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‘Perdi meu pai recentemente’, disse ele, meio cabisbaixo. O verbo perder, apesar de popular, tem aspectos semânticos variados

Por algumas vezes, podemos imaginar que palavras de nível erudito é que teriam alterações de significados, mas podemos estar enganados.

Nem sempre essa característica da linguagem se vincula a termos cultos, clássicos e eruditos, dando vez a populares para que também mostrem sua riqueza de sentido.

O verbo perder está inserto nessa segunda classe, tão variado que é, apesar de popular.

Frases nobres com perder: “Altamente lhe dói perder a glória” (Luís de Camões). “Os altos caem, os grandes rebentam, e todos se perdem” (Padre Antônio Vieira).

Como poeta, não posso perder o gosto de escrever, mesmo não sendo reconhecido. O ladrão não tem nada a perder. O bom advogado nunca deve perder o interesse pela causa do cliente. Perde tempo com coisas inúteis. Perdeu a voz com o susto. Mariá vem perdendo a fala após um AVC, e o médico disse que essa afasia é irreversível.

Também, vamos em busca de frases cotidianas que nos deem essa nuance interessante.

Um exemplo está exposto na introdução: O amigo, ao se encontrar com o outro, disse-lhe que tinha sumido uns dias por estar meio adoentado e ‘ter perdido o pai’ (para dizer que o genitor tinha falecido).

Ele estava com quantos anos? Ia fazer 93 neste mês (referindo-se ao fevereiro em curso).

Seu genitor viveu muitos anos bem vividos, sempre atuante, produtor agropecuário; em tempos passados, dono de um seco-e-molhados bem sortido numa vila da região.

Ganhou bom dinheiro, comprou terras e ‘arresolveu’, como costumava se dizer no regionalismo ágrafo, mudar de ramo: de comerciante, já que não era comum usar o termo ‘empresário’, passou a fazendeiro, com abrangência na agricultura. Gado da raça Nelore e produção de melancia e abóbora.

Vamos dar-lhe um nome fictício, Antero, para ficar mais evidente a história ora narrada.

Seu Antero nunca teve preguiça nem comodismo, nunca cruzou os braços nem na hora do almoço; mal teria terminado de ‘engolir o sustento do corpo suado’, já saía em nova diligência: buscar uma vaca parida, olhar o gado do vizinho para possível compra de algumas reses, determinar o plantio de sementes ou ferrar pequena boiada comprada ‘antes de ontem’, no alvorecer do dia, de muito calor, e ele montado naquele baio fogoso, de boa picada, ou, quando dava sorte, o filho aparecia guiando seu Jeep Aero Willys para chegar à fazenda do vizinho, sempre em estrada de chão, com muita poeira, buracos e alguns solavancos, que não incomodavam, já que tinha uma missão nobre e não se importaria com os incômodos, acostumado que era com a dificuldade. Êta jipe forte!

Antero foi um homem nobre, honesto, bom trabalhador, contrito em sua fé, não muito risonho, mas não triste; o cenho sério, mas não zangado nem se queixava de dor de barriga, ou da inflação galopante, que assolava, e assola, o País.

Chegou o seu dia, e Deus o levou. Para fincar melhor os dizeres, o filho disse que ‘o perdeu’, mas não punha culpa em Deus, que ‘perder um ente querido faz parte do trâmite da vida de todos nós’.

Se o objetivo do texto é mostrar o verbo perder, tentemos explicitar o que nos mostra o léxico sobre ele, como o define.

Perder, nascido do verbo latino perdere, é transitivo, com muitos significados.

Ficar privado de, deixar de ter (algo que se possuía): Perdi meu relógio no meio do caminho entre minha casa e a loja onde trabalho.

Extraviar, desencaminhar (um objeto): Manuela perdeu a mala de roupas na viagem que fez a Jacobina, depois de sair de Itaberaba, passando por Ipirá, Baixa Grande e Mairi. Paulinho perdeu os documentos no trajeto do trio elétrico entre a Barra e Ondina em Salvador, esta semana. Quem os achou, favor entregá-los a um famoso, que me vai devolvê-los, com certeza. (Disse a um amigo.)

Arruinar ou desgraçar: pôr a perder. A cozinheira, meio atrapalhada, arruinou a comida da patroa, por excesso de fogo alto. Pôs a perder até o arroz, que ficou queimado.

Deixar de presenciar ou usufruir: perder um filme, uma exibição. Rapaz, andava doido para ver a película O Seresteiro de Acapulco, com Elvis Presley, e, no dia em que passou no cineminha de minha cidade, eu estava numa pescaria, por sinal, não peguei nada de peixe (disse o professor aloprado, chateado consigo mesmo, que não deu assunto às datas e se deu muito mal).

Ficar privado de: perder o juízo, a visão. A mãe perdeu o juízo, maltratou os filhos com cipó-chumbo, o que agora não pode fazer, e foi presa, podendo perder a guarda dos dois, um menino de 8 anos e uma menina de 10. Seu Pedro, mexendo com soda cáustica, deixou cair um pouco em seus olhos e corre o risco de perder a visão.

Ser derrotado em: perder o jogo. O Bahia perdeu muitas partidas na Série A do Brasileirão e caiu para a Segundona (há algum tempo). Obs.: Muito comum no futebol, falar-se que um time perdeu ‘para o outro’. O time perdeu de 1 a 0. A frase ‘O time perdeu do outro’ parece linguagem inovadora sem muita afirmação. O time A perdeu de 2 a 0 do time B. Não seria melhor dizer ‘O time A perdeu de 2 a 0 para o time B’?

Desperdiçar. O cara perdeu tudo que tinha no jogo.

Não chegar a dar à luz, abortar. Venho avisar a todos que Marina, que estava grávida de oito meses, perdeu o filho ao tomar um choque quando avisada que seu esposo tinha falecido num acidente de carro. (Caso assim seria o chamado aborto espontâneo, salvo o melhor dizer de um especialista; na linguagem regional, costuma-se ainda dizer que é chamado ‘perca’, isto é, a perda de um filho em aborto natural).

Perder é verbo transitivo direto, como se pode ver em ‘Ele perdeu os direitos políticos por dez anos’. De modo geral, o sentido maior do verbo perder é ficar privado de (de um bem, direito, recurso; de um objeto ou ente querido).

Perder é muito usado no sentido de não vencer, ser derrotado. Perdeu tudo. Quem joga, perde ou ganha. Perde a chance.

Como verbo pronominal (perder-se), tem o sentido de errar o caminho, extraviar-se. Marieta se perdeu na estrada de mata fechada na Chapada Diamantina entre Mucugê e Igatu. Do mesmo modo, pode-se dizer ‘Eu me perdi no que queria falar sobre a energia solar’. O Mundo se perde diante de tantos fatos mentirosos que vemos e ouvimos no cotidiano.

Um sentido ‘antigo’, que estaria em desuso, ou tornando-se termo arcaico, é dizer que ‘A moça se perdeu com o namorado’, uma vez que havia o preconceito arraigado de não ser aceita a relação sexual (consentida) antes do casamento. Para não haver risco de mau exemplo, o rapaz fugia com a namorada na garupa do cavalo, e depois voltava para se casar (mesmo que um dos dois fosse menor de idade). Isso para que o pai valentão não obrigasse o casamento ‘na polícia’. Um delegado afoito seria o primeiro a ir à casa do compadre ao saber que o casal de pombinhos teria fugido (mesmo a pé). ‘Vamos atrás daquele moleque, e ele vai casar, sim, se não quiser levar uma peia forte de vara verde’, como fez um delegado em Cachoeira Grande, no tempo em que se amarrava cachorro com linguiça. O animal era tão tolo, que passava fome e não se soltava ao comer a linguiça, porque obedecia às ordens de seu dono.

Perdi-me em minhas reflexões, concentrado que estava nos significados de perder. Perdi o fio da meada e vou parar.

A outra parte, que tem o tamanho da linha de um novelo, fica por conta do leitor, que sabe de ‘causos’ em que alguém se perde nas suas conjecturas.

Um abraço.

 

 

 

João Carlos de Oliveira

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