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Dicionário de tempo ido e dicionário moderno. Que sentido é dado aos vocábulos ‘tragédia’ e ‘fatalidade’ na linguagem popular em tempos atuais?

Tragédia é uma peça teatral, assim definida por douto dicionário de 1956, editado em Porto, cidade portuguesa. Esse tem a ‘marca’ LELLO & IRMÃO, os editores, exemplar que adquiri na Livraria Brandão por volta de 1958, situada onde, hoje, se acha o Calçadão de Jacobina (a Livraria não existe mais). Tinha meu undécimo ano de vida, juntei uns trocados vendendo coisas, e ‘corri’ a pé, andando cerca de 15 quilômetros, depois uma carona de jipe, até chegar à cidade, num percurso de aproximadamente 34 km. Foi um dia de viagem, sem comer, pois não havia mais uma ‘moneda’. Devo ter comido umas duas bananas na feira-livre, porque seria um sábado, e não sei como voltei. Cheguei à noite, todo esmolambado. Só o pó. Guardei a prenda, e fui ao rio tomar banho. Após, contei a minha mãe, que ficou sorrindo, toda a peripécia. Comprei-o depois de juntar a dinheirama durante uns dois ‘mêis’, assim como nós ‘dizia’. Devia estar usando umas ‘precatas’ de couro, as chamadas alpargatas, ou alpercatas. Um chinelão rústico, que durava toda a vida.

Grande sucesso um menino de 11 anos ter um dicionário em Cachoeira Grande, e já contei a história que o levava para a roça a ler informações: o dicionário é uma enciclopédia. Tem de tudo; mapas, autores famosos, ilustrações de animais e dados de cidades, entre outros itens. Sobre Jacobina consta assim: “cid. e mun. do est. da Baía, Brasil, sede da com. de seu nome; pop. do mun. 63.209 hab.” (sic). Note a grafia do nome do Estado, e curioso que nessa época podíamos encontrar a expressão ‘cocada bahiana’. ‘Com.’, abreviatura para Comarca. Sobre Rui Barbosa deste modo: “Barbosa (Rui), estadista e jurisconsulto brasileiro, n. na Baía, em 1849; um dos fundadores da República no Brasil, da qual foi o primeiro ministro da Fazenda. Dotado de vasta e variada erudição e de grande eloquência, primoroso estilista, jurisconsulto abalizado e profundo, Rui Barbosa foi embaixador do Brasil na Conferência da Haia (1907), onde representou brilhantíssimo papel. Entre outras obras de grande valor, escreveu: O Papa e o Concílio, Habeas Corpus, Cartas de Inglaterra, etc. Foi senador federal e presidente da Academia Brasileira. M. em 1923” (sic).

Hoje, dizemos ‘A República Federativa do Brasil’ para dizer, no popular, o Brasil. Escrevemos ‘primeiro-ministro’ para designar essa função, e ‘primeiro ministro’ seria a primeira pessoa a exercer a função de ministro. Comum vermos nos relatos políticos que Ruy Barbosa foi ‘o representante do Brasil na Conferência de Haia’ (na Holanda), onde fez ‘brilhantíssimo’ discurso em favor de nossa Pátria. Não dizemos, hoje, senador federal, mas senador da República. Presidente da Academia Brasileira, certamente, refere-se à Academia Brasileira de Letras (ABL). Estilista não se trata do modista, aquele que cria uma coleção de costura, que faz ‘arte’ na função de vestir com elegância e esmero famosos, divulgando suas obras em passarelas em todo o Mundo. N. para ‘nascido’; M. para ‘morto’, ou ‘morreu’.

Estilista é aquele que escreve, e fala, com estilo apurado. A frase ‘Plena a luz do Sol na tarde tórrida de Verão’ (uma frase nominal, como é de meu estilo), não pode ser trocada, como foi, por ‘Em plena luz do sol, em uma tarde tórrida de verão, a Caatinga sofre’. Esse hábito aborrece, implica alterar o estilo do autor de um conto ou crônica, por exemplo. Esse seria o costume de alguns editores de concursos literários por aí afora, usando a expressão ‘Preparação e revisão de texto’ (…), e adiante constam um nome, que seria a pessoa revisora ou corretora de textos. Usam, tão-somente, um aplicativo que faz certas alterações no texto, que nem sempre contém erro de grafia ou de linguagem; traz uma versão que pode ser correta, mas não é a mesma linguagem do autor. Pense em usarem esse sistema na linguagem de um autor como Guimarães Rosa, dono de termos regionalistas na maior profundidade do idioma pátrio. A alteração usada não foi ‘autorizada’ por mim, e não havia erro de Português. Teria ficado mais bonita, mais poética? Justo que prefiro a minha a essa reescrita. Não vou mais participar desse tipo de concurso. Prefiro manter-me no anonimato a ser famoso com uma linguagem que não é a minha, por mais estrambótica que seja, e por mais elegante que seja a deles.

Fazer correção olho a olho, palavra por palavra, frase por frase, nem todo mundo sabe. Tenho lido obra que usa o mesmo termo, com o mesmo significado, ora em minúscula, ora em maiúscula. E dizem ‘a nível nacional’ no lugar de dizer ‘em nível nacional’. Chegam ao disparate de trocar ‘a pé’, como manda a regra em não usar crase antes de palavra masculina, para ‘à pé’, como chegam a usar ‘à prazo, à bordo, à óbito’, e mais um mundo delas.

Estilista pode ser, ainda, o especialista em Estilística, parte da Gramática Analítica que estuda o estilo de autores, como o de Graciliano Ramos, Ariano Suassuna, Érico Veríssimo, ou de poeta como Gonçalves Dias, Castro Alves, Raimundo Correia, e um moderno, como o nosso ilustre confrade Zarfeg, da Academia Teixeirense de Letras, que adora o tipo de texto chamado ALDRAVIA, e o de minha preferência é um haicai, de minha autoria, como este:

Manhã que encanta

o vaqueiro campeia o gado

e o riacho? transborda.

(Paisagem)

No dicionário, há um extenso relatório com o título EPÍTOME DE GRAMÁTICA PORTUGUESA, tratando das principais regras gramaticais da Língua Portuguesa de então, que seriam usadas em Portugal. Não faz referências ao uso no Brasil, a ser Gramática da Língua Portuguesa no Brasil. Notemos, ainda, que o adjetivo ‘portuguesa’, mais tarde, ganhou acento circunflexo, portuguêsa, abolido em 1971, isto no Brasil, pela Lei Federal de número 5.765, de 18/12/1971, cujo objetivo maior foi abolir o acento grave em palavras derivadas: de formávamos sòmente, de rápida, ràpidamente, como de cômodo, adjetivo, que ficaria no feminino (cômoda), escrevíamos cômodamente. Hoje, escrevemos comodamente, somente, rapidamente. Cômodo não é o mesmo que uma pequena área, um quarto; cômoda não é o móvel, muito usado pelas jovens no passado, quando não tinham guarda-roupa. Um menino da minha época colocava suas roupas numa mala de couro, ou numa bruaca, também de couro.

Na época da versão desse dicionário, escrevia-se consequência, que passamos a escrever conseqüência (com trema), sinal gráfico extinto pela Atual Reforma Ortográfica.

Epítome não é termo usual entre nós; pode ser ainda em Portugal, com o significado de ‘resumo’. Do Grego epitomé, exatamente, tem o significado de abreviado, por isso, resumo, ou resumido.

Na relíquia que tenho em mão, guardada como preciosidade, o que me honra ‘por demais’, há um resumo substancioso sobre Tiradentes, Joaquim José da Silva Xavier, o alferes. Enforcado, teve parte do corpo mostrada em praça pública. Isso é tragédia, porque, ainda mais, houve festejos escandalosos sobre o fato horripilante. Nada sobre Anne Frank, a menina que sofreu morte injusta, que viveu a tragédia do Holocausto, e nunca teria sido uma fatalidade.

Fatalidade é acontecimento funesto, destino que determina irrevogavelmente os fatos. Observa-se que se grafava ‘irrevogàvelmente’, tanto no Brasil como em Portugal, e ‘factos’, em Portugal, como ainda hoje o registram.

Porque o texto vai longo, fiquemos por aqui. Outra parte fica por conta do nobre leitor, que tem conhecimentos para dissecar mais dados.

Um abraço.

 

 

João Carlos de Oliveira

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