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‘Seu Manuel, ‘viemos’ falar com o senhor que ‘teve’ um acidente com o carro de seu filho’ (sic)

Esse e outros enunciados cotidianos merecem uma análise, não científica nem literária, mas pelo veio gramatical, que deveria estar patente na escrita nossa.

‘Viemos’ se tornou forma verbal comum, tão corriqueira nas introduções linguísticas quando alguém visita familiares ou pessoas amigas, ou em textos jornalísticos de caráter popular, mesmo que o falante ou o redator não conheça muito dos trâmites gramaticais da norma culta. Isso o que se deduz ao ouvirmos as falas nossas ou lermos textos em sites diversos.

Tanto, assim, poderia pensar um professor, um analista, que aqui hoje vai este comentário, possível de agradar a uns, de alertar a outros, de fazer um paralelo entre a norma culta e a linguagem popular, de tão largo uso, aceita por milhares de usuários, embora os doutos possam dizer ao contrário.

Esse viés não ofende a ninguém. Serve, apenas, de comparação; que, apesar da fuga a regras, faz o mesmo efeito das frases usadas que seguem nossa rígida Gramática Normativa.

‘Viemos’ está no lugar de ‘vimos’, não do verbo ver, mas de vir, na primeira pessoa do plural (nós), no presente do indicativo.

Eu venho, tu vens, ele vem, nós vimos, vós vindes, eles vêm.

Vimos tem o mesmo valor semântico de estamos (aqui) para falar com o senhor, seu Manuel, que aconteceu (que houve) um acidente com o carro de seu filho.

E por que vimos não aparece no início da frase? Supostamente, porque seria confundido com vimos de ver, e querem dizer que é de vir, equivalente a estar, chegar, comparecer, entre outros possíveis sinônimos.

Observamos que a flexão viemos não está incorreta, pois ela existe, é claro, no pretérito perfeito do indicativo do verbo vir: eu vim, tu vieste, ele veio, nós viemos, vós viestes, eles vieram. Ver no pretérito perfeito do indicativo flexiona: eu vi, tu viste, ele viu, nós vimos, vós vistes, eles viram.

O leitor deve admitir que o passado perfeito do mesmo verbo é tão difícil de conjugar como o presente. Viemos não é mais fácil que vimos, em se tratando do verbo vir, como sabemos.

E, então, por que isso acontece? Porque temos a tradição oral forte, e a usamos de maneira mais sossegada que seguir o que diz a norma, ou buscar a reminiscência de algumas aulas (‘chatas’) da Língua Portuguesa na fase do cospe-e-fala, do giz branco no quadro-negro, às vezes, feito de compensado torto, encostado na parede mofa, sem ar-condicionado, em sala apertada, com 70 estudantes, de par em par, em carteira de madeira rústica.

Esse tempo não foi fácil. Hoje é que as acomodações são outras, e os nobres estudantes, de esforço mínimo, reclamam muito. Aprendem mais, aprendem menos? Certo é que o material físico e digital é mais farto, mas o resultado é que fica a cargo do censo do MEC, que nem sempre nos convence do que diz e registra em documentos.

Busquemos frases paralelas, que possam substituir essa tão tradicional, a saber se as alternativas seriam aceitas ou usadas, ou ainda usuais nos olhares de alguns.

Alguém poderia questionar: ‘Se sempre foram usadas, por que mudar agora?”

Fica a cargo de cada um aceitar as opções:

Vimos aqui, seu Manuel, para falar com o senhor que aconteceu um acidente com o carro de seu filho.

Estamos aqui, seu Manuel, para falar com o senhor que houve um acidente com o carro de seu filho.

Chegamos aqui (agora), seu Manuel, para dizer ao senhor que ocorreu um acidente com o carro de seu filho.

Olá, seu Manuel, como vai o senhor? Queremos lhe dar uma notícia, talvez, não muito boa, mas fique calmo: seu filho sofreu um acidente de carro na estrada aqui perto, mas está tudo bem.

Seu Manuel, queremos dar uma notícia ao senhor. ‘Se’ prepare, mas não é coisa grave. Seu filho sofreu um acidente de carro, mas passa bem no hospital. Nem precisa o senhor ir lá, que ele vai receber alta em pouco tempo.

Uma observação, agora, é a de que as três últimas frases, que seriam substitutas da usada, sirvam de exemplo para que não se use a tão ‘repetida’, como se fosse uma regra, como se fosse a melhor opção. Não se deve usar frases somente porque outros usam, mesmo certas, mesmo muito bonitas. Podemos, e devemos, usar as ‘nossas’, de nossa lavra, de nossa criatividade, sem imitar a fala de fulano ou sicrano, às vezes, só porque seria uma celebridade.

A linguagem de cada um é especial, como a roupa que veste, sem imitar ou copiar a de outrem. O que nos aborrece é que parte da mídia costuma dizer ‘use isso ou aquilo, porque é moda entre os famosos’, ou uma linguagem apelativa similar, como marketing, nem sempre benéfico ao povo.

Melhor que cada um use ‘calça curta’, conforme seus recursos, que ficar imitando a outros, a adquirir produtos de grife e ficar pendurado no cartão ou no banco. Por que não posso comer a minha carninha de segunda, e devo ficar imitando alguém que se vangloria em comer picanha até no café da manhã?

É de bom alvitre lembrar que a forma verbal ‘teve’ equivale a ‘houve’, nem é ‘teve’ do verbo ter. Teve é muito popular no dia a dia; também é usada no lugar de esteve: ‘Ele teve em sua casa, mas você não tava lá’, disse o amigo. ‘Teve’, de esteve; ‘tava’, de estava. Ele esteve em sua casa, mas você não estava lá.

Os verbos ter e estar costumam ser usados como ‘sinônimos’ por terem flexões similares, por serem muito populares, embora suas flexões gramaticais sejam distintas e exijam algum conhecimento.

Relembre alguns casos:

Eu tive, tu tiveste, ele teve, nós tivemos, vós tivestes, eles tiveram.

Eu estive, tu estiveste, ele esteve, nós estivemos, vós estivestes, eles estiveram.

Se eu tiver, se tu tiveres, se ele tiver, se nós tivermos, se vós tiverdes, se eles tiverem.

Se eu estiver, se tu estiveres, se ele estiver, se nós estivermos, se vós estiverdes, se eles estiverem.

O uso de forma verbal do verbo ter, como se fosse do verbo estar, é comum no dia a dia de muitos brasileiros, o que é aceito na linguagem popular, assim como se usa um tempo em lugar de outro (Se eu tivesse dinheiro, eu comprava um carro de luxo. Se eu tivesse dinheiro, eu compraria um carro de luxo. Se eu ganhasse na megassena, eu ia morar na Europa. Eu iria…).

Para fechar este comentário, os verbos ver e vir, de tão irregulares, são chamados de anômalos, assim como ser e ir, que se parecem muito: eu fui ao clube (ir), eu fui um menino doente (ser). Eu fora ao cinema. Eu fora um trabalhador rural.

Se possível, faça a revisão desses verbos, mesmo sem gramática: a Internet tem bons exemplos.

Um abraço pela visita.

João Carlos de Oliveira

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