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Descuido com a linguagem (“E lá vai eu atender o telefone”) pode ser evitado?

Descuido ou lapso, ou negligência linguística, pode ser evitado(a) se a atenção for dobrada. Ninguém está isento de deixar despercebido um deslize linguístico, mas para evitá-lo e corrigi-lo é preciso haver prática associada a conhecimento.

Assim como há desatenção em momentos dos afazeres cotidianos, como no trânsito, ele também pode acontecer no falar e no escrever.

O exemplo do título é uma negligência linguística (eu ‘vai’?). Seria forte se o usuário frequentou a escola por mais tempo. Parece comum, e não deveria acontecer.

Flexione o verbo ir no presente do indicativo: eu vou, tu vais, ele vai, nós vamos, vós ides, eles vão. Altere a ordem de sujeito anteposto (antes do verbo) para sujeito posposto (depois do verbo), momento em que a flexão não pode mudar: vou eu, vais tu, vai ele, vamos nós, ides vós, vão eles (não se trata do imperativo afirmativo, embora pareça).

Uma cidadã, conversando com sua amiga, em papo íntimo sobre problemas pessoais, contava que a todo momento atendia o telefonema de um ex que a perturbava. Ria e usava um refrão para sua história dantesca: “E lá vai eu atender o telefone”.

Volte o sujeito para a anteposição com as mesmas palavras ditas pela nossa aprendiz, que colabora para que pensemos sobre o uso da linguagem: ‘E lá eu vai atender o telefone’. Eu vai? Percebeu a gafe? Se você acabou de conjugar o verbo e viu que a primeira pessoa do singular nesse tempo é ‘eu vou’, por que passaria a ser ‘eu vai‘? Fica fácil responder que a ordem não altera a flexão do verbo. Foi um descuido, portanto. Orientada quanto a esse aspecto, seu ouvido ficaria ‘treinado’ o suficiente para perceber o lapso e daí para a frente evitá-lo. Em primeiro plano, a descoberta e, em segundo, a prática. Esse treinamento didático-pessoal conduz à aprendizagem imediata.

No trânsito, o cidadão só dá sinal quando há blitz. No dia a dia, vai estacionar e não dá sinal; vai sair e não dá sinal; assim, entra à esquerda ou à direita estabanadamente pensando que dirige bem. Não percebe seus lapsos.

Sob a ótica pilheriante, ‘ninguém sabe o que o calado quer’. Ninguém, pois, sabe para que lado o motorista vai, e o acidente acontece.

Este engano não seria tão perceptível: “Essa Unidade de Saúde não tem vacina contra a febre amarela”, faixa exposta na fachada do próprio prédio. Como não se trata de referência de terceiro, e pelo fato de o aviso ser editado pela própria unidade, o demonstrativo deve ser esta e não essa.

Um anúncio de prefeitura diz que uma via pública da cidade vai ser pavimentada com ‘bloquetes sextavado’. Se o substantivo está no plural (bloquetes), o adjetivo deve acompanhar a concordância nominal (sextavados). O editor do texto se esqueceu da regra de concordância nominal. Se ele, no dia a dia, considera estranha a fala ‘dez real’, agora seria a vez de seu lapso ser questionado. Cadê o olhar de lince? Lembrete: bloquete é diminutivo de bloco, e o sufixo ete, como em farolete, tem som fechado, mas ainda há quem pronuncie bloquete com som aberto.

Ghetto é grafia em Italiano (bairro em que foram confinados judeus na Europa discriminatória). Aportuguesada, como já foi e está sendo usada, sua grafia passa a ser ‘gueto’, assim como ‘stress’ (em Inglês) se tornou estresse. O uso de ghetto e stress imporia ao nosso idioma o toque de recolher: somente aqueles que viajam o mundo podem usar esses termos, vistos na lá fora, e trazidos para o nosso convívio. Poderia ser dito que quem usa gueto não se destaca, e aquele que usa ghetto demonstra suprema vivência com o mundo midiático e se trata de pessoa de elevada celebridade?

Tomara que este pensador é que não esteja correto, mas ousa dizer que, praticamente, todo vocábulo, emprestado ou não, cai no domínio público, e o veio popular, por ser plural, deva prevalecer sobre o individual.

Há quem pronuncie ‘máximo’ com um sotaque forte (‘má-quis-si-mo‘), e só ele o conhece com essa tendência ortoépica tão elitista. Máximo é ‘mássimo’, como auxílio é aussílio e trouxe é trousse. A ortoépia, como em látex (látecs), é bonita.

O uso de vírgula após o sujeito é dolorido e sintomático do descuido: não pode haver vírgula entre o sujeito e seu respectivo verbo. Os anúncios, e os mais comuns seriam os que representam entes públicos (Prefeituras, Secretarias, Autarquias etc.) cometem esse deslize inoportuno: “A Secretaria Municipal de Saúde, tem realizado um trabalho…”, modelo quase unânime quando se divulgam trabalhos sociais. Tiremos a vírgula! Exclua a vírgula, nobilíssimo redator-mor de qualquer ente público, por este País afora: A Secretaria Municipal de Saúde tem realizado um trabalho.

Menino, escutava a história de que o pequeno cágado tem sua carapaça em pedaços porque um dia, ao cair dos céus, teria gritado com todas as forças de seus pulmões: “Arreda, lajedo, que lá vai eu!”, mas o lajedo não arredava (não saía do lugar), e o quelônio se espatifou. Deus foi avisado, e com piadade dele mandou que remendassem todas as partes quebradas. Por isso, a carapaça do cágado tem esses ‘gomos’. A propósito, piadade é variante gráfica de piedade, e ‘lá vai eu’, apesar do lapsocaracteriza que há anos se tem o hábito de se usar essa flexão no lugar de ‘e lá vou eu!’, introdutória neste artigo. Que pena!

A mistura do tratamento verbal é constante, e tem-se tornado tão costumeira, que o errado corre o risco de ser dado como certo. Se o usuário opta pela pessoa você, todo o restante da frase deve seguir esse tratamento, cuja flexão verbal obedece ao que determina a Gramática, com os respectivos pronomes (seu, o, a, lhe etc.). Acontece, porém, que mal começam usando você, introduzem ‘te’, pronome próprio da pessoa verbal tu. Essa mistura não é aconselhável. Num dado momento, na linguagem falada coloquial, uma ou outra vez, ‘passaria’, mas o repeteco se torna vício de linguagem, ademais, em se tratando da escrita. O exemplo a seguir, encontrado em artigo da mídia sobre problemas de saúde, é característico desse descuido (ou seria mesmo falta de conhecimento?): “(…) estuda usar seu sangue para te identificar” (sic). Se temos ‘seu sangue’, a sequência frasal exige ‘para o identificar’ (para a identificar). Se a linguagem fica chique e moderna, com sintoma de proximidade do usuário com o receptor da mensagem, esse ‘te’, por outro lado, torna o texto cansativo e frágil. Não se trata de poesia, não se trata de documento íntimo, por isso, deve ser evitado. A Gramática exige, a partir de ‘teu sangue’, o tratamento na segunda pessoa do singular: tu és, fu foste, tu fazes, tu vais etc., o que não coadunaria com um texto publicitário.

Se você faz isso, sua linguagem se torna uma parede que começa com o amarelo e passa para o roxo, o verde, ou o azul, tudo na mesma ‘face’. Uma é lilás, outra verde, outra azul- escuro. Casa multicor? Aliás, pode ficar bonita, mas a linguagem, não.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

João Carlos de Oliveira

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