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Cacoete linguístico, e não é pouco!

A linguagem oral é interessante por ser dinâmica e versátil. Seria comum, e ‘normal’, não seguir estritamente os ditames da gramática, mas esse descumprimento deve ter limite. Não?

Dentro do uso de mais e/ou de menos, acontece o hábito nem tanto agradável, o cacoete linguístico.

Há um sem-número de exemplos.

O que é isso, companheiro?

No meio rural, a besta, ao receber a sela para a montaria, se muito arrochada, tem o ‘sestro’ de morder ou de dar coice; ao cavalgar, de refugar até por causa de um pequeno anuro que passa. Há um monte de ‘bestices’. Pode haver as ‘cavalices’.

Sestro é, exatamente, isso: o cacoete desastrado, a mania enjoadinha de falar, a prática de um hábito desastroso. Um sinistro.

Pela ordem e pelos nomes, a asneira ou asnice, do asno; a besteira ou bestice, da besta; a burrice ou burrada, do burro; a cavalice, do cavalo. E lá se vão outras.

O dicionário, simplesmente, diz que ‘cavalice‘ é a gulodice excessiva, certamente, em aspecto figurado, mas, mesmo assim, não condiz. No frigir dos ovos, uma grosseria. Mas quem faz isso? O homem. Estranho! O que o humano faz de errado é uma ‘cavalice’? Ou há, ainda, a asnice, a bestice, que seriam, juntas, as ‘asneiras‘, o que o asno e a besta ‘praticam’ de errado.

E outros sinônimos se encontram e reencontram na estrada sinuosa da sinonímia: a asnidade, a burrama (não só um coletivo, mas uma ‘estupidez’; a burrice pode impedi-lo de subir na vida). Observe como o sufixo ‘ice’ é dinâmico. Aplica-se a vários termos que têm a ‘cor’ ou a ‘raiz’ de um ente que não seja o ser humano (asno, burro, cavalo), mas seu significado, sim, como substantivo abstrato, é que recai no ser humano.

Para discordar do que o dicionário diz, para contradizê-lo, os abstratos asnice, burrice e cavalice, mesmo que não sigam uma simétrica ordem, tanto podem referir-se ao ente animal como ao ente humano.

A partir desse princípio, surge o cacoete, definido em quatro momentos.

  1. O homem tem o hábito de morder os lábios (tique nervoso, trejeito, sestro, movimento involuntário).
  2. O jovem não se incomoda com o prazer costumeiro da namorada de roer unhas (hábito, costume, vício, mania, gesto).
  3. Ela gosta de repetir ‘tipo assim’ toda vez que quer dar um exemplo do que se faz (de certo ou errado) no dia a dia (palavra ou expressão repetida habitualmente por uma pessoa ou por um grupo).
  4.  Muitas vezes, o menino de cabelos grandes passa a mão pela nuca (alisando os cachos) e retorce os lábios, piscando insistentemente (movimento involuntário, que consiste em contração muscular do rosto, em ações corporais ou faciais estranhas etc.).

Poderiam ser dadas outras definições, mas essas são basilares para dizer que ‘estamos, a cada dia, com o mau hábito de repetirmos palavras ou expressões desnecessariamente’.

Esses são alguns dos nossos hodiernos vícios de linguagem, ou cacoetes linguísticos, como este blogueiro os vem chamar aqui, embora os doutos possam discordar ou dar-lhes outras denominações.

São amostras grátis das mais ‘afamadas’ expressões do dia a dia que vêm acontecendo amiúde diante de olhares incrédulos de alguns ou do prazer inusitado de usuários que não se dão conta do uso que fazem da linguagem em momentos de comunicação.

Âncoras de canais televisivos há, em programas vistos nacionalmente, que têm o ‘doce’ prazer de falar: “É… Dá só uma olhada… É… Sabe! Entendeu? Tipo assim. O que que acontece?”

A lista se encomprida como bolhas de sabão que rodopiam no ar depois de uma soprada forte, e não se sabe a que o falante (‘na realidade‘) se refere.

Aliás, quando alguém discursa, e sempre na primeira pessoa do singular (para destacar seu eu-famoso), e usa ‘na verdade, o que que acontece?”, o que isso quer dizer?

Que tudo o que foi dito antes é ‘fake new’, já que insiste em frisar ‘na verdade’. Se isso for ‘verdade’, o dito antes foi ‘mentira’, ou notícia enganosa. E qual o mérito de o falante, ele próprio, fazer essa pergunta (‘O que que acontece?’) para ele mesmo responder?

Não está respondendo a uma pergunta que lhe foi feita por outrem.

Por isso, todos esses baitas cacoetes linguísticos, vícios de linguagem enfadonhos.

Essa contumácia (ou hábito contumaz) teria outro nome? Há quem diria que não causa nenhum problema (como se o comentário fosse coisa de purismo), que é fato comum na linguagem do dia a dia, com o objetivo de enfeitá-la, de dar-lhe realce…

Mas será?

Sim, um toque leve é uma ênfase quase poética ou metafórica, mas a repetição de termos similares aos expostos acima causa enfado, verdadeira micagem do nosso moderno momento de comunicação. Dizem por aí que o internetês é quase maléfico, mas há quem o defenda com unhas e dentes.

Nenhum comentário sobre isso se ousa fazer aqui agora.

“Olha só! Dá só uma olhada! Tá? Ah! Sim, eu ia dizendo que isso é bom… Tipo assim! O que que acontece?”

“O vento rodeia, rodeia e volta ao mesmo canto sem refrigerar o ar quente que circula no sopé da montanha descoberta de vegetação segura”, isso é que é um cacoete linguístico.

O figurado é mais seguro, interessante, curioso e comunicativo: “É um saco passar aqui”, quando o falante tenta atravessar a avenida que não tem passarela ou semáforo.

“Comer o pão que o diabo não conseguiu amassar”, para mostrar que existe uma tremenda dificuldade na resolução de problemas cotidianos.

“Porra na Bahia é…”, algo que denota a nossa liberdade de expressão.

“O cara anda enforcado”, quando a intenção ou o objetivo é dizer que seu dinheirinho não dá para comprar nem arroz de terceira.

“Chamou-o de morde-fronha”, ao referir-se à sua sexualidade, embora não esteja praticando homofobia.

“Enfezado fica o boi que não quer adentrar o curral onde estaria pronto para ser abatido no dia seguinte”, recusando-se, mas dejetando nas suas ancas largas uma quantidade enorme de fezes moles, sobre as quais passa o rabo seguidas vezes, freneticamente.

‘Homem enfezado’ é, apenas, o zangadinho, pois foi ferido por alguém que discordou de seus falares.

Para você, o que é um cacoete? E mais ainda: como, por quê, quando, onde, acontece o cacoete linguístico? Qual o seu?

Amanhã, depois de um dia seguinte, quero falar sobre ‘adequado’ e ‘inadequado’, a nova fórmula de se ver o uso da linguagem em redações escolares ou concorrentes de concursos múltiplos pelo Brasil afora.

João Carlos de Oliveira

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