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Seria difícil o uso da expressão ‘a ver’ comparada com ‘haver’? Certo é que enganos têm acontecido

Professor de Língua Portuguesa, fui testemunha ocular (que chique!) de educandos com dúvida ao usar ‘a ver’, confundindo-a com ‘haver’.

Recentemente, li pequeno texto em que o autor usou “Não tenho nada haver com isso” (sic), cujo erro parece modelo frasal comum no dia a dia. A semântica requer a locução verbal ter a ver, e não haver, verbo. Conclui-se que a má redação surge da sonoridade da expressão, deixando de lado o aspecto semântico, motivo que ajudaria o redator a evitar o erro.

Como explicar melhor essa incoerência?

O verbo haver, comumente, impessoal, por isso, usado somente na terceira pessoa do singular em qualquer tempo, dos três modos verbais, requer mais conhecimento e não é popular.

Ainda é de bom alvitre lembrar que, no lugar de haver, o popularesco usa ter, nas mais diversas flexões (tem, tinha, teve), quando seria , havia, houve. Essa fuga à norma culta é exercida porque a linguagem coloquial não acataria o que determina a Gramática Normativa.

A fala rasgada, à vontade, como manda o figurino de quem desobedece a regrinhas que perturbam, é melhor e fica mais condizente com a liberdade de expressão. Seriam esses os motivos.

O outro lado é que até mesmo o professor mais rígido admite que, em alguns momentos, sim, mas na hora do falar culto haveria a preferência do ditame gramatical, e as dúvidas se dissipariam. Se estamos em casa, no barzinho, no bate-papo da esquina, e dizemos “Tem alguma coisa ali”, nada mal, entretanto, quando o texto exige rigor, se o discurso é nobre, se se trata da tese de formatura, de um editorial, entre outros, o descumprimento não seria bem-vindo. Só que, pelo costume, a dúvida eleva a pressão sanguínea, e o erro surge no lombo da mariposa esvoaçante. A gafe vem ao ar! Faltou o alicerce a quem não está habituado a princípios gramaticais.

A ver, claramente, faz parte de uma locução verbal, como “Isso nada tem a ver com aquilo”, e haver é, puramente, o verbo magistral e dinâmico, com muitas nuances, que vem atormentando o pensar de alguns usuários.

Lá nos idos de 1960, comerciantes anotavam em suas cadernetas as compras da freguesia, e poderia constar um HAVER, parte da Contabilidade, registrando que o cliente teria ‘um troco’, valor que ultrapassou a compra. O dicionário diz que HAVER representa ‘parte da conta que recebe os lançamentos de crédito’. E poderia ser esclarecido: “Seu Manuel, o senhor tem um haver nesta loja; na próxima compra, desconto essa diferença”. “De quanto, seu Ocrido?” (corruptela de ‘Euclides’, nome de meu pai), que responde: “Não é muito, mas serve”, a sorrir.

E assim o comerciante sobrevivia, suplantando crises, a vender fiado, para pagamento na época da safra (período sazonal do milho, do feijão, do fumo de rolo, da colheita da mamona etc.), sem inflação, e todos se davam bem. Que tempos! Comprava-se no início do ano, e o pagamento seria em junho; comprava-se no meio do ano, e o pagamento seria em dezembro!

Outro viés curioso é que haver, além de verbo, usado no plural (os haveres), pode indicar os bens, as posses, as riquezas. Abastados têm  muitos haveres, mas chamam a isso de ‘patrimônio’, termo da modernidade. Por isso, ‘a meu ver’, isto é, na minha opinião, a imposição da linguagem moderna é menos eficaz. Deixemo-la à vontade! Se ‘morrer’, morre livre! A tendência de a linguagem seguir uma só vertente é impositiva, e não nos dá maior liberdade de expressão. Haja vista o que escreveu Guimarães Rosa, como em Sagarana.

O mundo hodierno começa a ver outras formas de discriminação racial pelo uso maléfico da linguagem pejorativa. O futuro Presidente do Brasil há de ver que não se governa sozinho, que ele não é o Poder, apenas exerce o poder, que este não pode ser tão obrigacionista.

Pulando de um galho a outro, como saguim em busca de comida, o usuário deixa haver e usa ter, que o substitui de sobra no cotidiano. Tem gente na rua. E o outro diria: uma flor na lapela do meu semblante.

Tem manga no pé, para dizer que a mangueira está carregada. “Há manga na mangueira”, eis a frase chata, metódica, sem nenhuma ênfase. Melhor a popular: Tem muita manga nesse pé. Tem muita fruta nessa mangueira. O pé da manga está carregado. E isso não é o tronco, mas a planta.

Há uma maneira fácil de se resolver esse dilema gramatical, sem usar ‘tem’ no popular e sem usar ‘há’ da norma culta enfadonha. Basta: A mangueira tem mangas; o cajueiro tem muito caju; o rio tem muito peixe (rio piscoso), no lugar de ‘Há peixe no rio’.

Ficou no mesmo ‘mané-luís’, mas nada melhor como ser livre!

Sabemos, também, que haver substitui ter, e vice-versa, em tempos compostos, com a diferença de que o popular não é chegado à forma culta: Eu tinha chegado cedo (eu havia chegado cedo), e o ultrapopular é mais enfático: Nóis tinha chegado cedo ontem! (E pronto.)

Assim, vamos tecendo nossos falares: tem poeira na rua, a rua tem poeira, a estrada tem muito buraco, tem muito buraco na estrada, e não temos nada a ver com isso, nós é que temos o direito do haver com o governo.

O viés da troca de uma frase deve ser entendido e explorado da melhor forma possível.

Ideal seria que cada um soubesse usar tanto um caso como outro com desenvoltura na hora certa, respeitada a diferença entre o uso popular e a norma culta.

Finalmente, haver, impessoal, nos tempos e modos próprios: há, havia, houve, houvera, haverá, haveria; haja, se (quando) houver, se houvesse; haja, não haja. E ter segue seu caminho personalíssimo. Ele tem, eles têm. Teem não existe.

Se for necessário, o verbo haver auxiliar é supimpa em muitos dizeres: Tem havido ranger de dentes nesta casa. E ainda se destaca em locuções verbais: Eu hei de vencer, tu hás de ser forte, meu filho; você há de conseguir o que deseja; nós hemos (havemos) de chegar lá a tempo do sepultamento; vós heis (haveis) de dizer a verdade perante o Tribunal sob pena de serem incriminados.

É só treinar.

Houvemos por bem votar na oposição. Há um futuro pela frente. A vida tem caminhos tortuosos. Tem muito barulho na praça. Eu hei de conseguir o que desejo. Ele houve por bem ir embora de casa. O senhor ainda tem um haver nesta loja. A mosca nada tem a ver com a ferida do doente. Por que não haverás de ser sincero com os teus? Ele houve por bem deixar o emprego para ser advogado, já que fez Direito e foi aprovado no exame da Ordem.

Obrigado por ter andado aqui.

João Carlos de Oliveira

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