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“Eu nasci há dez mil anos atrás”, escreveu Raulzito, com a permissão do coautor, Paulo Coelho

‘Há dez mil anos atrás’ como?, se não se usa ‘há dez mil anos na frente’!

Apenas um pleonasmo, dos ‘brabo’, a que a Gramática chama ‘vicioso’.

‘Tem’ esse vício de linguagem até na música? Depende, e vai ‘pro’ sim e ‘pro’ não. Certo é que o autor-cantor e seu parceiro, também chegado à música de protesto, ou de cunho filosófico, grande maioria voltada ao misticismo, fizeram uso de licença poética. Nesse tom, o vício de linguagem, ou erro gramatical, passa a ser poesia e liberdade de expressão. E pode (para ser diferente).

Raul Seixas, o baiano, soteropolitano arretado, deixou para a musicologia brasileira sua visão de rebeldia; suas músicas são fortes, embaladas pelo jeitão rasgado de dizer as coisas, um dito bem-feito, sob o olhar místico, ora literário, ora musical, voltado ao underground do pensamento que não trilha o lugar-comum. Certo é que Raul Seixas deixou marcas, e boas, em se tratando de dizer algo que viesse a chamar a atenção. São muitas peças de alto valor, e ouvi-las é ‘vê-las’ sob o manto da liberdade de expressão, enunciando o inusitado, dizendo o incomum. Ouve-se Gita e se passa a pensar sobre vários tons da vida, róseos ou negros. Como aquele filme, ’50 tons de cinza’, Ouro de Tolo e Maluco Beleza ornam o cérebro pensativo e aromatizam o ambiente. Se o filme tem ’50 tons’, as músicas de Raulzito têm milhares deles, envolvendo o que nos cerca.

Esse Seixas foi um bom ‘dizedor’ de verdades ‘bíblicas’? Ele viu, na alma do velho sentado na calçada, a cantar, a presença de Maomé, o profeta?

A Terra é tão nova assim? Apenas, ‘dez mil anos’? A música se remonta a um tempo que não sabemos decifrar? Nem o efeito-carbono 14 sabe exatamente o dia em que um astro nasceu, a hora exata de nascimento de Luzia, nossa heroína ancestral, o dia em que o Sol, a maior estrela (há outras invisíveis?), deixou escapar as maiores fagulhas. Ou vai explodir daqui a ’60 milhões de anos’. Nessa data, a Terra ‘renascerá’ e terá outra forma, outros habitantes, e terá havido outra Arca, maiúscula, e outro Noé, moderno, com a visão de um Planeta digital, evolucionista, condicionando seus animais num imenso navio moderno e refrigerado, preparado a proteger várias espécies sobreviventes das intempéries humanas, porque das ‘divinas’ já teriam escapado antes.

E por que Rual escreveu essa frase forte (“Há dez mil anos atrás”) se não há esse tempo ‘na frente’ nem sabemos definir qual o outro?

Para chamar a atenção, para dizer algo novo, para decifrar o cotidiano de forma inusitada e soberba, no linguajar de um menestrel supimpa.

Quis inovar e conseguiu. Quis um ‘quiz’, que não foi respondido em sua época, mas o é agora. Todos queremos saber o que estaria acontecendo em seu pensamento quando escreveu essas linhas polêmicas, que ainda estão em evidência.

Eu nasci!

Há dez mil anos atrás

E não tem nada nesse mundo

Que eu não saiba demais…

Estrofe-refrão, que se destaca por várias razões.

‘… mil anos’, que poderia ter um apóstrofo poético (mil’anos), para unificar a pronúncia dos dois vocábulos, dando sonoridade forte ao tom musical, de que um musicista saberia muito dizer. ‘Milanos‘, uníssono, traria requinte sonoro de largo efeito.

Esse um aspecto.

‘… atrás‘, se estiver acompanhado de ‘‘, como fica claro, é termo desnecessário na linha gramatical culta, por ser um pleonasmo vicioso (tão combatido quanto ‘entrar para dentro’, como outros), mas deu certo por estar na linha da liberdade de expressão: usou licença poética, que valeu a pena, e mais, rima com ‘demais‘, logo adiante. Ficou bem.

E segue a linha popular da linguagem: ‘tem‘ no lugar de ‘‘ (se tivesse usado ‘E não há nada neste mundo‘) ficaria destoante com o improviso ou informal, a linguagem descompromissada do cotidiano, com menos realce. Melhor o original: ‘E não tem nada nesse mundo/ Que eu não saiba demais’.

O popular adora trocar ‘este’ por ‘esse’, e ele o fez. Este é formal: este dia, este ano, este momento. Esse é informal, livre: esse dia, esse ano, esse momento. Cabe em qualquer falar, mesmo com dúvida, e torna o dizer mais simples e compreensivo.

Em uma só estrofe, inovou com três termos, tanto que gerou questionamentos.

Podemos repetir que ‘atrás’ é o chamariz para o retorno a ‘eras’, rimando com ‘demais’; ao contrário, a poética musical, nessa letra, não teria o ápice de fazer bem aos ouvidos, para depois se pensar no conteúdo: tudo que quis dizer, e conseguiu.

Vivemos, no dia a dia, a aférese ‘tava’: Eu tava lá com ele. O ‘estava’ é quando estamos na festa de formatura, na escrita da tese de um curso, quando lemos a Gramática e o professor de Português (nem sempre compreendido) expõe na lousa: eu estava, tu estavas, ele estava, nós estávamos, vós estáveis, eles estavam. E vem o pretérito-perfeito: eu estive (pouco usado; gostoso é ‘eu tive lá’), tu estiveste, ele esteve, nós estivemos, vós estivestes, eles estiveram.

Esse falar ‘menor’ é da linguagem popular, a oral é mais, que suprime a sílaba inicial de formas verbais: ‘tamos’, de estamos; ‘tá’, de está; ‘cabamos’, de acabamos. Aférese, fenômeno linguístico, mais comum que se parece. Estar faz parte desse metiê: Eu ‘tive’ lá; ele ‘teve’ lá, eles ‘tiveram’, entre outras formas. O lado semântico resolve a dúvida: Eu tive tempo (verbo ter, normal); Eu ‘tive‘ lá (estive; aférese). Mas é bom ter cuidado.

Ainda existe “a dez anos morei nessa casa”, erro crasso em se tratando de cumprir a norma culta: “Há dez anos, morei nesta casa”, quando o usuário está em frente a ela, ou dela está próximo.

E quem grafa ‘analiza’ no lugar de analisa, ‘paraliza’ no lugar de paralisa, e mais: ‘nasçemos’, ‘conheçedores’, pois ç e c são iguais; os mesmos ‘cês‘. Deixem a Gramática de lado e vamos à prática do dia a dia, do Português hoje em dia, sons falantes e úteis.

Há outro pleonasmo, professor? “Perguntei só para saber, mas não quero ‘saber’ de usar; falo como me der na telha, e pronto”, pensou.

O comum: “Repetição desnecessária de palavras ou ideias”. ‘De palavras’ existem vários: sair para fora, entrar para dentro, hemorragia de sangue, subir para cima, descer para baixo -, e os de ‘ideias’ são piores: ser resgatado com vida, vítima fatal (muito usados na linguagem jornalística ou midiática). Perdoemos o homem comum que usa “Se caso você vinher” (sic), mas discutamos o que diz qualquer apresentador falastrão na TV que fere nossos tímpanos: “Foi salvo com vida, ele se suicidou com um tiro no ouvido esquerdo” (o homem era destro). ‘Ele voltou atrás‘ dói.

O literário ou estilístico realça a mensagem: “A vida, o vento a levou!”, João de Deus, poeta português. “A serra do Rola-Moça/ Não tinha esse nome não“, Mário de Andrade.

Um exemplo, mutável: Há 20 anos atrás morei nesta casa. Elimine atrás: Há 20 anos, morei nesta casa. Elimine : Morei nesta casa 20 anos atrás.

Um poético de segunda linha: “Venha cheirar o cheiro mais oloroso que a rosa vermelha guarda nas suas pétalas rubras”.

 

João Carlos de Oliveira

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