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O ‘pueta’ Patativa do Assaré, grande cordelista cearense. E mais: como você fala ‘mueda’ ou ‘moeda’?

Brincando um pouco, “Cuma vai, mêo amigo?”

Não se preocupe com seu sotaque linguístico. Deixe-o à vontade. Aliás, sotaque ou ‘sutaque’? Ambas as pronúncias são aceitas, desde que respeitada a grafia, que será única. A pronúncia é que varia, e cada região tem o seu ‘saber’ fonológico, o tom de sua fala. Um sotaque aqui e outro ali revelam a sabedoria de nossos falares.

O comentário de hoje não se refere ao significado regional de certas palavras. O que é ‘breado’, o cara ‘parrudo’. A questão não é discutir, por exemplo, o baianês, com seu sotaque de consoantes fricativas, nem o aspecto semântico de certas palavras. Mama, ‘tetio’ acaba de ‘chegá’, diria um soteropolitano arretado. O cara é supimpa!

O Brasil tem várias estradas culturais, muitas encostas, variados grotões e veredas outras, que cabem em todas as vertentes gustativas. O importante é cada lugar manter sua tradição e não ceder a pressões opostas, algumas maliciosas ou pejorativas.

Muitos comentários sobre a fala regional, e esse ou aquele entendimento capcioso seria comum, alegando que o Nordeste tem sotaque ‘estranho’, mas o cidadão que diz certa tolice, em seguida, solta uma bomba: “Faz aí pra mim esses dois ‘jôgo'”.

O sotaque fonológico, forte, nada tem a ver com o nível cultural do falante. Não se pode convencionar que seria costume de pessoas iletradas. Temos mais é que observar, respeitar e aprender com cada exemplo, com cada pessoa, com cada região.

Uma revista científica comentou, certa época, a linguagem de um distrito aqui perto, Helvécia, pertencente ao Município de Nova Viçosa, que, segundo a História, foi fundado por família de origem suíça. Helvécia nasceu de ‘Helvetia’, termo latino.

Não sei se a tenho ainda no meu acervo ‘bagunçado’, mas guardo um pouco o conteúdo. E entre os fatos narrados, um cidadão dizia ‘facon’, para ‘facão’, que, no fundo, é aumentativo de faca, grande faca, uma ‘facona’. Facão, arma branca avantajada. “Faca grande e pesada; ferramenta agrícola. Facão de mato, sabre curto, de lâmina larga, empregado para abrir caminho através da vegetação fechada; machete”, diz um dicionário. Há, ainda, na região, entre os cortadores de cana, um termo derivado de facão, facoa, arma branca de lâmina larga, também, para decepar mais rápido a ‘toiceira’ de cana, muito embaraçada.

A análise segue esse tom. ‘Ão’ que se torna ‘on’, próprio de nossa nasalização cotidiana, regional, ou de um ‘o’ que se torna ‘u’ (‘muqueca’), e um ‘e’ que se torna ‘i’ (‘mistiço, minino’).

Um vendedor de feira-livre, desses alegres e falantes, contava sua história: que resolvia tudo com ‘uma panela’. Quando uma pessoa o aborrecia, ia lá com um treco na mão, e ‘pá nela’, e não havia mais conflito. E o que era isso? Um ‘facon’, largo, que batia com a ‘paina’, com o lado, de modo que não machucasse nem ferisse. Uma metáfora metonímica para dizer ‘o lado macio’ do facão.

A pronúncia ‘pueta’ serviu de mote, assim como Patativa buscava o seu para decantar a cultura, a estrondosa sabedoria dos camponeses. Esse sotaque não revela baixo nível cultural. Grande mestra da Língua Portuguesa, que me passou lições magistrais (lembro-me bem!), tinha sotaque fonológico marcante: sempre dizia ‘jugar’ baralho, ‘jugar’ bola, ‘jugar’ palavras ao vento.

De saudosa memória, permita-me a História que cite seu nome, de elevado destaque: fundou o Colégio Santa Mônica em Serra dos Aimorés, MG. Nesse histórico educandário, apenas, ‘ginásio’, naquela época, tive meus primeiros rudimentos do idioma que hoje comento tanto, e o tenha lecionado por cerca de 40 anos. O Santa Mônica, hoje, é Escola Estadual Vanda Reuter, em homenagem à mestra que o fundou. O povo de lá sabe dizer mais.

Falemos de Patativa do Assaré. ‘Patativa’ preconiza a ave canora, e ele, ‘canoro’ e grandioso cantador popular, grande mestre de bonitos versos, da Literatura de Cordel, recentemente (decisão tardia), reconhecida Patrimônio Imaterial do Brasil, o patrimônio culturalíssimo do Nordeste, mais que de outras regiões pátrias.

Assaré é sua cidade natal, no torrão cearense. Se ‘agreste’ for, será pelo clima, não pelo aspecto cultural, literário ou cordelista. Rendamos homenagens ao mestre.

Patativa escreveu ‘Ispinho e Fulô’, cuja escrita já indica o sotaque, bonito e autêntico. Patativa não se declarou cordelista, mas o foi, e fica garantido que foi, também, repentista de classe, espetacular na sua força semântica, poética e literária. Deixou inúmeras obras, como ‘Vaca estrela e Boi fubá’ (lembre-se de que ‘fubá’, nesse caso, indica a cor, esbranquiçada, e não o subproduto do milho). Deixou ‘Balceiro’, cuja grafia, curiosa, não se trata de homônimo de ‘balsa’, que lembraria a jangada do Nordeste, comum no CE. Balça, do Latim ‘baltea’, é mata de arbustos espinhosos, e balceiro, o cão, audaz e ligeiro, que levanta a caça oculta nas balças.

Patativa foi registrado Antônio Gonçalves dos Santos, nome simples, o Antônio popular em todo o Brasil. Perdeu o pai cedo, ficou cego de um olho, e estudou pouco, mas teve padrão cultural similar a um ‘bom’ sabido. ‘Letrado’ na vida e na lida com a enxada, na vivência de momentos que exigem discernimento, sua sabedoria nos enche de orgulho. O aprender na prática, cara a cara com os fatos, dá mais fôlego ao aprendiz.

Concluindo essa parte, deixou ‘Inspiração Nordestina’, talvez, obra-prima, muito bem redigida, autêntica, mostrando o homem do interior, a vida do campo, o trabalhador braçal, que dá muito duro. Uma expressão lembra essa fase: ‘trabalhar no macaco’, o fazer do homem que vivia com a enxada no ombro a trabalhar muito, um dia de serviço aqui, outro ali, nos roçados dos amos, e apenas alguns réis. Hoje, ‘trabalhar no macaco’ seria como ‘trabalhar a seco’, sem direito a refeições. Apenas, um trocado. A diferença é que, com a amizade, com a frequência, recebia um pouco mais: simpatia, amizade e pequenas ajudas (refeição, mantimentos, pequenos produtos, um quilinho de carne do cabrito ou do leitão).

Se o repentista do Nordeste pronuncia ‘pueta’, que nos chama a atenção, não vamos contestar. No dia a dia por cá, de nós outros, encontramos ‘mulambo’ para molambo, ‘mueda’ para moeda, ‘muciço’ para maciço, ‘distaque’ para destaque, ‘disconto’ para desconto, ‘dumingo’ para domingo, seu ‘Dumingos’ para seu Domingos, ‘muqueca’ para moqueca, e ‘tumate’, ‘mininim’. Já ouvi esta: “Eu sô um homi mufino”. Mofino não é derivado de mofo, mas o covarde, medroso, entre outros significados. Termo de origem árabe.

Tanto essa variante fonológica é dinâmica entre nós, que temos variantes gráficas oficializadas: jabuti e jaboti, caroá e caruá, caburé e caboré. E para pelica, fala-se ‘pilica’; para botica, ‘butica’. Butico é ânus. E nosso ‘nóis’, nosso ‘arrôis’, talvez, um sotaque leve ou suave, doce como a mangaba madura no pé. Pronuncie no seu jeitão: ‘Seu Munhoz está aí’?

‘Distruir’ a Natureza, ‘distruir’ o que comeu (digerir), um homem ‘firido’ no seu íntimo.

Relacione, com calma, alguns termos de seu falar com as respectivas pronúncias (o ‘muleque’ de rua), e verá que todos usamos esse mesmo falar. Mas, por favor, tenha cuidado com ‘ele estreiou idade nova’, ‘freiar’ o carro, e pense um pouco: areal ou areial? Os dois existem, mas, respeitada nossa estrutura gramatical, deveria ser apenas areal; ‘areial’ adveio de uma pronúncia regional e ficou. Temos quem diz buscar areia no ‘areial’ (ou ‘arial’) e lugares como o nome Areial.

Amanhã, conversaremos mais.

 

João Carlos de Oliveira

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