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Plural de modéstia: “Estamos muito feliz”, disse o escritor no lançamento de sua obra. Você conhece essa concordância ideológica?

O ‘eu’, diferente do eu-poético, em momentos de solenidade, pode transparecer atitude antipática ou antissocial. A tendência de grandes oradores, políticos e pessoas cultas, em ocasiões formais, é abolir essa individualidade. Pode vir à tona o plural de modéstia, a consumar  gesto de atenção ao outro.

O cuidado inicial é que não se confunda modéstia com timidez nem com erro gramatical. O modesto, sob olhares diversos, destaca o pluralismo e isola o individualismo.

Trata-se de excelente vertente da linguagem, cujas ‘encostas’ cheias de sinuosidade evidenciam psicologia e poesia, e, muito mais, a fala de ‘um’ como se fosse a de ‘todos’. Isso é bom, senão ótimo.

Quando o poeta registrou “Minha terra tem palmeiras,/ Onde canta o Sabiá” (Canção do Exílio, de Gonçalves Dias), o eu-poético é grandioso, mas algum escritor, político, orador etc. diria, em hora solene, “Nossa terra tem palmeiras,/ Onde canta nosso Sabiá”.

Nosso, refúgio da sublimidade linguística, porque é de todos; excluída a leveza da poesia, minha e meu não soariam bem.

“Senhores, estamos satisfeito por essa grande obra e pela presença de todos”.

Mesmo que se penda para a ‘demagogia’, essa fala é peculiar. O usuário não quer o destaque somente para si. O adjetivo satisfeito, no singular, indica o falante; estamos inclui toda a plateia, inclusive o orador.

Este o plural de modéstia.

A modernidade, a simplicidade, e mesmo a imitação de soberanos no passado,  justificam o porquê dessas frases. O falante faz elogio a outrem e, indiretamente, enfatiza a si mesmo pela inclusão de ‘amigo, ouvinte, eleitor, colaborador’ etc.

Tancredo Neves, Ivan Claret Marques da Fonseca e Antônio José de Azevedo, personagens com as quais convivi, uma menos, outra mais, embasam esse comentário, endossam o fundamento do plural de modéstia, porque o souberam usar com maestria.

Chamado, também, plural majestático, por ter sido usado por reis modestos, o plural de modéstia chama a atenção pela sua abrangência: ‘não destaca, unicamente, quem o usa, mas inclui todos os presentes’.

Quando se usa ‘Estamos feliz por esta obra’, a semântica e a metáfora confirmam: ‘Todos os senhores fazem parte deste momento especial’. Essa linguagem pode acontecer em lançamento de livro, em que o poeta ou escritor, ao receber os louros da vitória, divide-os com seus leitores, assim como o político cosmopolita divide a honra com seus eleitores e munícipes.

Vi e ouvi o escritor e médico Ivan Claret Marques da Fonseca fazer seus discursos em Nanuque ao divulgar suas obras, que foram muitas. Fiz parte do bloco de amizade dele, ‘fomos convidado‘ a verificar os possíveis lapsos que poderia haver em sua escrita múltipla, mesclada de termos populares e técnicos referentes à Medicina e ao Meio-Ambiente. O leitor teria um glossário espetacular. Em muitas delas consta ‘revisão gráfico-ortográfica do professor João Carlos de Oliveira’, assim como na obra Sementeira Luzente, do ilustre Antônio José de Azevedo, grande kardecista, que atuou em Nanuque por cerca de quarenta anos, ou mais.

Supostamente, a frase do título é de um desses baluartes.

Outra ilustre personagem que me aguçava o olhar quando discursava foi Tancredo Neves, como em BH, na sua pré-candidatura ao Governo de Minas. “Estamos determinado em fazer das Alterosas o grande berço da democracia”, teria dito.

Seria sua índole não usar ‘eu’, mas ‘nós’ seguido do adjetivo no singular: nós abrange os ouvintes; o adjetivo, indicativo de modéstia, é o expresso que conduz o orador.

‘Estamos muito feliz neste momento’. Gramaticalmente, a concordância verbal estaria incorreta, mas fica ressalvada a opção pela concordância ideológica. O adjetivo feliz, sintaticamente, é o predicativo, que deveria concordar com o sujeito: Estamos felizes,  neste momento. Mas a regra excluiria toda a graça da linguagem modesta. Basta o leitor analisar.

A concordância ideológica, nesse caso, é a silepse de número: feliz (eu) é nós, que é todos (estamos).

“Somos exigente com o dinheiro público”, teria dito um prefeito, para demonstrar sua capacidade de aplicação com o dinheiro, que é de todos, o erário municipal, demonstrando que ele não governa sozinho.

Se tivesse dito “Sou exigente com o dinheiro público”, poderia ser arrogante ou prepotente, e o povo, que o elegeu, não tomaria parte em sua estrondosa administração. Se usasse “Somos exigentes com o dinheiro público”, o povo poderia não entender ‘somos’. Quem? Usando o verbo no plural, todos se incluem, e o adjetivo no singular inclui o prefeito, que não quer ser ‘eu’, mas ‘nós’, ele e o povo.

Temos um plural cerimonioso, e modesto. O nós abrange o singular, em primeiro plano, e o plural, em segundo; em visão mais ampla, inclui aquele que ouve o discurso.

Sabemos, também, que vós, pronome da segunda pessoa do plural, indicando com quem se fala, pode, em dado momento, representar o singular, quando queremos dar tratamento honroso a alguém: ‘Senhor Prefeito, vós sois o maior administrador que este Município já teve em toda a sua História’.

Em contrapartida, tem o mesmo uso no plural: ‘Senhores Deputados, vós sois os maiores representantes da Assembleia Constituinte neste País, motivo que nos leva a crer que a Lei está sendo bem cuidada’.

Não seria difícil encontrarmos essas frases na nossa emblemática política nacional, e os que a usam, ou a usaram, sabem e souberam manifestar-se, falar em púbico para conquistar e obter apoio.

Ficou razoável o comentário?

Que tal variarmos?

‘Proposta’ pode ser adjetivo no feminino singular ou substantivo simples, feminino singular.

Três regras de transição propostas no Congresso. Adjetivo.

As propostas foram feitas no Congresso. Substantivo.

O sotaque nos dá curiosidades sobre a linguagem falada. ‘O’ se torna ‘u’: ‘muleque’ de rua; ‘muela’, ‘mueda’, ‘muqueca’, ‘muchila’, cujas grafias oficiais são: moleque, moela, moeda, moqueca, mochila.

Por isso, respeitemos a individualidade: ‘pirigo’, ‘distaque’ (o comércio usa tanto distak, que parece grafia correta), ‘distino, ‘disconto’, ‘minino’. Mas cuidado: ‘destinto’, que perdeu a cor, desbotado; ‘distinto’, diferente, que não é similar a outro.

Linguagem popular: Apesar do país está quase falido. Linguagem culta: Apesar de o País estar quase falido.

Antifurto, antifebril, paradigmas para outras grafias, com a observação de que não podem ficar separados (anti furto, contra mão). Por isso, anticrime. Havendo R ou S, dobram-se essas consoantes: antirroubo, antirrugas; minissérie e minissaia, formas já consolidadas. Se houver H, o hífen é obrigatório, anti-hipertenso, anti-humano, como sempre foi super-homem. Mas semi-integral, anti-inflamatório, mega-associação (o hífen se dá pelo fato de haver duas vogais iguais).

Pagamos impostos e taxas, os mais diversos, cujas alíquotas variam. O produto foi taxado. O ICMS varia de produto para produto e de Estado para Estado. Taxar é submeter a uma taxa, entre outros significados. Confronte com tachar, pôr defeito em, censurar, entre outros. Tachou-o de intransigente.

Confundem taxar com tachar. Se falamos de comportamento, usemos tachar; se se trata de estabelecer uma taxa, taxar. “Ele foi taxado de ladrão’ estaria correto se usássemos ‘O imposto da mercadoria foi tachado em cinco por cento’. Nesse patamar, têm sido usadas muitas expressões de forma incorreta.

Mas… Ele foi tachado de ladrão; a mercadoria foi taxada em cinco por cento. Fulana foi tachada de feminista; a alíquota do arroz foi taxada em dezesseis por cento.

Sua visita engrandece esta coluna.

 

João Carlos de Oliveira

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