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“Ah! Esse é o menino que mata aulas”, disse o mestre. O que é ‘matar’?

O significado mais comum de matar é o que dói: tirar violentamente a vida de alguém; assassinar.

Por extensão, extirpar, destruir, exterminar, extinguir, como o fizeram em muitas guerras. Verdadeiro genocídio.

Entretanto, a visão semântica poética ou hilariante de matar pouco se usa, pouco se vê… Por receio? Pela morte da poesia? Pela falta de viés em que se busque a suavidade, a temperança, até a Paz?

Matar não é matar: ao contrário, de forma indiscutível, é saciar. Matar a fome, matar a sede, matar a saudade de sua terra.

Está mortinho de fome! Coitado!

Matar é aguçar a visão para ver o novo. Mate sua curiosidade e veja o que encontra no outro lado da bocaina.

Mas pode ser prejudicar: matar a fé, matar a esperança, matar a aparência. O paramédico fez tudo errado e matou a cirurgia. A pele da senhora ficou com a estética de casca de maracujá, encolhida e enrugada.

Não mate a obra. Procure um engenheiro.

Importunar, atormentar, encher o saco. Esse cara mata a gente de vergonha. Não fala coisa com coisa, e ainda fica em pé olhando para um e para outro, procurando ‘bufa no cordão’. Cara de pau, filho de uma ‘que ronca e fuça’.

Deixar com aparência de mulher descabelada. Com pressa, matou a fachada da casa. Pintou que nem a cara dele. Borrou tudo.

Mate a charada, amigo, já que você é sabidão!

Quando é que uma mulher tem ‘moela’?

Quando morre e deixa o marido na pior, porque nem todos sentem a ausência da amada.

“Cumpadre, como vai? Sube que sua muié morreu!”

“É, cumpadi, é a vida. Deus tenha ela num bom lugar. Nunca mais acho uma como ela!”, disse o atormentado.

Gazetear. “Você, bom aluno, apesar de tudo, mata muita aula. O que é isso, rapaz? Por que ages assim?”, disse-lhe perguntando o mestre.

O bom jogador sabe matar a bola. Pode vir com a força que for, mas a segura no pé com destreza e chuta no canto certeiro. Não há goleiro que pegue. Pelé deu muitos desse chutes, como Gérson, o canhotinha de ouro.

Matar aula, matar a charada, como matar a sede, e outros ‘matares’, estão perdendo vida e espaço, e só se usa ‘matar’ para matar de verdade: tirar a vida, assassinar o direito de outrem, tirar a respiração do Mundo, e deixá-lo pegando fogo, como um efeito-estufa que destrói tudo e provoca incêndios na Austrália, em que, imagine, disse um cientista, “morreram mais de quatro milhões de animais” (sic).

“Me matei nesse serviço e não deu em nada”, disse ele, mostrando o resultado funesto de sua experiência. Foi consertar a rede de esgoto e estourou o cano. Sujeira, além de ter inundado tudo.

Ele se matou com um tiro. Suicidou. Não se suicida o outro, por isso, apenas, O jovem suicidou. O jovem se suicidou é o suicídio do idioma, já fragilizado como anda. Perde um pouco sua naturalidade.

O que é meio?

Chegou meio descabreado. Foi à festa meio chique. Ficou meio espantada com o que viu. Anda, coitada, meio cabisbaixa, parece que olhando para a própria sombra.

Ele se mata de tanto trabalhar. Trabalha, trabalha, e dá em nada. Não ganha um tostão para comprar fumo podre. Vai morrer de fome. Eu que não vou me matar de trabalhar. Melhor ficar como estou: livre e solto, como bala na boca de banguela. Eta, leseira, meu Deus! Isso é que é vida! Estou aqui no Largo da Mariquita, no Rio Vermelho, em Salvador, na Bahia dos baianos e dos soteropolitanos, só vendo a onda teimosa bater na pedra e voltar, bater e voltar. Assim, ela se mata!

E tantos os matares, que a outra parte fica por conta do leitor. Por conta de sua responsabilidade, vai pagar o lanche. Por causa da chuva, ninguém saiu, e não ‘por conta de uma chuvinha tola’ não pôde sair.

Ele pode sair agora. Ele não pôde sair ontem porque chovia torrencialmente.

Só fuma mata-rato. Só bebe mata-rato. Por isso, amarelo. Quer vender o canário, amarelo?

A mãe zelosa que diz para o filho, quase aos berros: “Se você fazer isso, seu moleque, vou matar ocê no pau” (sic), mãe extremamente cuidadosa. Excesso de carinho não mata, só fortalece.

E o sem-que-fazer avisa: “Vou matar ele de raiva! Ele vai ver!” (Sem comentário.)

Eles! ‘Eles’, o quê? O que você quer dizer com isso?

Preste bem sua atenção!

“Vai vim ver eles aqui, hoje”, disse ela. Frase popular.

“Vai vir vê-los aqui, hoje” (forma culta que cansa, enjoa). A coloquialidade é mais ‘pura’.

O problema é que o culto reclama, como um nobre causídico. Deixe o povo falar, meu filho, como bem sabe, bem quer e bem pode.

Como é que é mesmo? Como é que é que você disse?

Essa repetição não faz mal; além de enfática, apenas se trata de um termo expletivo na análise sintática, isto é, não tem função, somente enfeita. Que bom!

“Vai ver eles estão fazendo coisas erradas por aí”, disse o analista, que não é o de Bagé.

No primeiro enunciado, de caráter popular, ‘eles’ tem a função sintática de objeto direto do verbo ver, por isso, vê-los. No segundo, tem a função sintática de sujeito, uma forma culta.

‘Vai ver’ indica uma suposição, antecedida de um quê integrante, conectivo valente, polivalente: Vai ver que eles estão fazendo coisas erradas por aí. Podem estar, talvez estejam. Há grande possibilidade.

Essa linguagem confronta o culto e o popular, e os dois têm vida própria e seu momento de ser, de veicular, levando sua mensagem. É bom que deixemos acontecer.

Derivados de matar: matador, que mata; matadouro, o lugar em que se abate o animal, como pode acontecer no meio rural. Na cidade, há o frigorífico; na roça, o matadouro é a céu aberto, e o boi catingueiro, abatido, é levado para o açougue, cuja carne-seca é de lascar.

Paçoca de carne-seca é boa pra dedéu!

Matar vem do étimo latino ‘mactare‘, tirar a vida, dar morte violenta a, assassinar.

“Mas ele matou o capataz foi porque… o negro a queria no seu jirau”, Jorge Amado.

Na Medicina: Matou-o um enfarte cardíaco. (Nem todo infarto ou infarte é cardíaco.)

As mentiras, chamadas também de bravatas, nem matam nem assustam. Enxovalham é o mentiroso, que fica no canto a ver navios.

O excesso de trabalho mata. Matava-se de tanto estudar. Estão-se matando à toa! Como se matam esses candidatos à procura de votos. Mata o sono por mais de doze horas. Anda matando o tempo. A geada mata os cafezais. Matou o bicho (tomou um trago ou acertou na cabeça o milhar do porco). A mãe zelosa mata-se pelos filhos.

Não se mate de inveja, companheiro: siga seu próprio caminho.

 

 

João Carlos de Oliveira

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