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“Nós lhe amamos”, regência verbal mais usada no dia a dia. (?) O verbo amar pode ser transitivo indireto?

A dúvida sobre a regência do verbo amar parece cotidiana. O dicionário, como a gramática, diz que se trata de verbo transitivo direto. Nós o (a) amamos. Se quiser: Amamo-lo, Amamo-la. Portanto, em ‘Nós lhe amamos’ há uma transgressão gramatical.

Frases comuns em que amar tem regência transitiva direta são como estas: Eu amo você, eu te amo, a mãe ama o filho.

E segue a lista corriqueira: Nós o amamos, nós te amamos, Jesus Cristo te ama.

Se houver dúvida de ‘quem ama a quem’, o enunciado A mãe ama o filho pode ter nova redação, pois ambos amam um ao outro: A mãe ama ao filho; o filho ama à mãe (em que há objetos diretos preposicionados, em destaque).

A frase bíblica “Amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei” prova, claramente, que amar exige objeto direto, variando seu complemento de acordo com a fala de cada um.

Eu amo você. Eu, o sujeito; amo, a forma verbal, na primeira pessoa do singular, no presente do indicativo; você, termo que completa a ação verbal, objeto direto.

Eu o amo (eu amo-o, amo-o). Eu amo-a (eu a amo, amo-a). Eu amo-te (eu te amo, amo-te).

O ciclo da ação verbal foi completado, e não restou dúvida. Os três termos fundamentais dessas frases são evidentes: sujeito, verbo e objeto direto.

A propósito, se o redator preferir Eu amo a você, a regência verbal não se altera de direta para indireta, como se poderia pensar, uma vez que está presente a preposição a, transparecendo que haveria objeto indireto (a você). Mas não é.

Não mudou a regência; amar continua transitivo direto. Apenas, uma vez que o objeto direto (você) ficou precedido de preposição, que não é obrigatória (somente enfática, por estilo do usuário, falando ou escrevendo), passa-se a ter objeto direto preposicionado: a você, que torna a frase mais elegante, poética talvez, típica de quem usa linguagem diferente da habitual.

Eu te amo pode ser Eu amo a ti, gerando o mesmo objeto direto preposicionado: a ti.

Se alguém tem dúvida, esse esclarecimento pode ser dado: Eu te amo e eu amo a ti são frases sem qualquer erro.

Eu ti amo, essa não pode. Ti só pode ser usado precedido de preposição.

Jesus te ama. Correto. Jesus ti ama. Incorreto.

Jesus ama a ti. Bonito, correto, variante de Jesus te ama. Nada mais.

E Jesus lhe ama, não. Lhe deve ser usado tão-somente quando a regência verbal é transitiva indireta ou transitiva direta e indireta: Ele lhe oferece um bolo. Oferece um bolo a você. Sujeito, ele. Oferece, verbo transitivo direto-indireto (quem oferece, oferece alguma coisa a alguém). Lhe, objeto indireto. Um bolo, objeto direto.

Talvez, modelo assim induza alguém a usar “Nós lhe amamos, Josefina”. ‘Eu lhe amo’ não condiz com a norma culta. Para suavizar a crítica, trata-se de linguagem popular muito comum (quase tradicional), em que a regência verbal foi alterada. Temos exemplo de solecismo: Nós a amamos, Josefina (próprio da linguagem culta) deixaria um empecilho na fala. Nós lhe amamos ficaria com menos dificuldade de se dizer, descartando as frases elitizadas (Nós a amamos; Amamo-la), enjoadinhas (?).

Com isso, lembremos o nosso grande escritor Mário de Andrade e seu romance Amar, verbo intransitivo. O que quis dizer com essa adjetivação, alterando esse verbo de transitivo direto para intransitivo? O autor, profundo e irônico, quis chamar a atenção de mudanças que deveriam ocorrer em nossa Pátria, Tupiniquim, com atrasos notórios. O objetivo maior do Modernismo Brasileiro foi ‘transgredir padrões sociais’, e ele começa pelo verbo. A obra retrata uma vida ‘moderna’, diversa da social de então. O pai de uma família de alta classe social contrata a alemã Elza, chamada Fräulein, para ser governanta dos pais e da prole, mas no fundo queria iniciar sexualmente Carlos, adolescente da família. Outra transgressão? Creio que o leitor saiba mais dessa história, e no caso fica prudente ler o resumo encontrado facilmente por aí, fato que não houve antes. Carlos aprendeu a amar? A crítica diz que nenhum dois se apaixonou, um pelo outro.

A partir dessa visão ousada, Mário de Andrade cria, mais tarde, Macunaíma, cujo enredo gira em torno de um ‘herói sem caráter’, o índio aculturado ou civilizado, que gostava das cunhãs, e as bolinava até debaixo d’água, papel representado por Grande Otelo no filme. Saiu-se muito bem; seu sorriso maroto não nega essa performance. Vi-o pela primeira vez nos idos de 1979 (1980), e passei-o na sala de aula para uma turma de oitava série do ginasial, na Escola Polivalente Antônio Baptista da Mota, em Nanuque. A diretora de então, nossa querida Geilda Alves. O restante fica por conta de jovens que vivenciaram esse momento.

Bons tempos se foram!

Complementando, verbos que podem mudar a regência. A criança já fala algumas palavrinhas. Falar, transitivo direto.

A criança já fala (isto é, conversa, diz certos termos (papá, mamã…), cujo significado é generalizado. Falar, intransitivo. Houve a mudança da regência verbal.

Outros exemplos?

O oleiro trabalha o barro. A moça vive situação crítica. O jovem estuda Matemática. Verbos transitivos diretos.

O homem trabalha. Todos nós vivemos. Ele estuda muito. Verbos intransitivos.

O verbo transitivo direto, normalmente, se completado com um pronome oblíquo (o, a, os, as, se, te, nos, vos), poderá ser usado incorretamente se o redator redigir o enunciado com os pronomes lhe e lhes.

Eu o vejo. Normal e correto. Eu lhe vejo. Diferente, incorreto (perante a Gramática Normativa).

A não ser que lhe tenha valor de pronome possessivo, que passa a ser adjunto adnominal do complemento verbal em questão. Eu lhe vejo os olhos. Correto; lhe tem valor de pronome possessivo. Eu vejo os seus olhos. Rasgou-lhe a camisa (rasgou a sua camisa).

Estendendo um pouco mais o uso de amar, muito popular, construamos frases em que seu complemento verbal aparece precedido de preposição, cuja função sintática é objeto direto preposicionado, como mostrado antes.

Nós amamos a você. Nós amamos a ti. Nós amamos a vocês. Nós amamos a eles. Nós amamos a elas. Nós amamos a vós (que vale para o singular e para o plural).

Pode haver uma ou outra frase considerada estranha ou não-usual, mas errada não está. Não seria comum alguém falar Eu amo a ela, que se parece com a popular Eu amo ela. Esta é que se trata de linguagem muito comum não endossada pela Gramática Normativa em se tratando de linguagem culta. Eu a amo.

Concluamos o comentário com estas frases:

Ama-te a ti mesmo como Jesus te ama.

Ame-se a si mesmo como Jesus o ama.

Os primeiros pronomes (te, se) são objetos diretos; os segundos (ti, si), são objetos diretos preposicionados, por estarem regidos da preposição a: a ti mesmo, a si mesmo.

Fico por aqui. Obrigado pela visita.

 

 

João Carlos de Oliveira

2 Comments

    • Obrigado. Continue lendo os artigos, e que sejam úteis; tenha bom proveito. Certamente, seu conhecimento linguístico ajuda a entendê-los.

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