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Prezado senhor; ‘presado’ cliente. Como usar esses dois vocábulos. Têm o mesmo significado?

A linguagem é um mundo de muitos ensinamentos. Aprendemos de tudo, dos costumes às ideais, dos contratos aos contatos, como dos preconceitos, e muitas vezes dos momentos em que palavras se confundem.

Prezado vem de prezar, que por sua vez se origina do verbo latino pretiare, com o significado de estimar muito, ter em alta consideração, reverenciar, respeitar, querer bem, considerar.

Prezado amigo Manuel, estou a convidá-lo para um adjutório lá em nosso sítio na segunda-feira; vamos matar uma leitoa para dar almoço aos nossos participantes: o objetivo é limpar o tanque, porque vem aí uma temporada de chuva, e a aguada será bem-vinda.

Senhor Pedro, prezo em falar com Vossa Senhoria que minha filha vai casar-se no mês que vem e venho convidar Vosmecê e toda a sua família para participar da nossa festança de casamento, lá em casa mesmo.

Comercialmente, a palavra prezado, com seu respectivo feminino e os plurais, é, e foi, muito usada em cartas, circulares, memorandos, ofícios e outros documentos, nos contatos entre empresa e clientela.

Livro didático de Língua Portuguesa de períodos  anteriores, chamado Português Comercial, teve amplo uso em cursos de segundo-grau, especialmente, os de Contabilidade. Nosso querido e competente professor Domingos Paschoal Cegalla deixou os seus, todos muito bons. Quando não-intitulado assim, recebia o nome Português para o Segundo-Grau, com a abrangência de gramática, antologia, exercícios, literatura e correspondência. Além desses aspectos, o professor buscou ensinar ‘a linguagem da correspondência comercial‘, a ética, o zelo etc., porque não pode ser a ‘particular’ nem próxima da poética ou coloquial. Vemos que normalmente abandonaram-se esses critérios, misturando tudo. Se dissermos a um jovem como ele deve fazer uma carta ao Papa, ele estranha, que tratamento se usa, com o que costuma discordar.

Hoje, infelizmente, para a perda de bons conhecimentos e prejuízo da linguagem (técnica e redacional), que nos envolve no convívio entre pessoas, no mundo dos negócios, ou o marketing, não vemos mais essas obras sendo utilizadas, e no seu lugar documentos outros são facilitados. A qualidade é questionável, e modelos de todos os tipos se projetam na Internet para consulta ou cópia, ao bel-prazer de quem fizer uso deles.

Por causa desse modus operandi facilitador, a linguagem fica muito a desejar, como artigos de sites regionais eivados de baitas enganos de grafia, concordância verbal-nominal e mau uso da vírgula, abundantemente usada depois do sujeito ou antes do complemento verbal, graves erros costumeiros na maioria desses textos, infelizmente.

Prezado é o amigo, querido, estimado, dileto, considerado, aquele a quem se quer bem.

E presado, com a mesma pronúncia, o que é? Em primeiro lugar, trata-se do homônimo homófono de prezado. Homônimo homófono é o vocábulo que tem a mesma pronúncia de outro, embora com grafia e significado diferentes. Comparemos cozer (cozinhar) e coser (costurar); caçar (perseguir) e cassar (tirar os direitos políticos); acender (atear fogo) e ascender (subir, elevar-se), entre muitos.

Presado, pois, vem de presar, que por sua vez viria do verbo latino prehensare, com o sentido de apreender, capturar, prender. Daí, surge seu sinônimo, o verbo apresar. Pode-se dizer que o animal foi presado (preso, apresado, apreendido) e que a água fica apresada (represada) entre as reentrâncias de um terreno. Certo que prehensa, do Latim, forma presa, em Português.

A explicação sequencial é que se tem confundido presado com prezado, e vice-versa, tanto no aspecto gráfico como no semântico.

Um cidadão prezado é o estimado, querido, mas homem presado, semanticamente, teria um significado incongruente, ilógico, quando se quer falar da relação humana; a não ser que se quisesse dizer que ele foi ‘preso’. A expressão ‘presado amigo’ não quer dizer o amigo estimado.

No meu acervo fotográfico consta uma foto de pessoas de uma família (os padrinhos de batismo do passado) em que o chefe, carinhosamente, escreveu “Ao presado João Carlos e família” (sic), cujo ano teria sido, mais ou menos, 1979.

Houve erro de grafia? Para o período de aprendizagem do escrevente, não, que foi inclusive tabelião de cartório de registro civil de ‘pessoas humanas’, como se costuma dizer. A sua escolaridade de segundo-grau, e o seu nível técnico-profissional, com o seu comportamento ético, demonstra um nível superior de grandiosidade.

A Gramática de então, que nem era chamada Gramática Normativa, não era absoluta: a ortografia teria vivido a fase chamada pseudo-ortografia, em que a escrita de uma palavra teria sido bem diferente da de hoje.

Presado seria normal sem o sentido de hoje; seria como prezado, muito usado: ‘Meu presado amigo proprietário da Loja São Roque, senhor Euclides Carlos de Oliveira, escrevo estas mal traçadas linhas para lhe dizer que estamos todos bem’, modelo de frase da época, indicativa de pessoa que sabia falar e escrever, admirada por muitos, embora nem talvez tivesse o primário completo, e ainda seria requisitada para fazer documentos, ler e interpretar escrituras, certidões e acordos diversos, desde os do comércio como aqueles que selavam a venda de propriedades e semoventes.

Interessante que não havia tantas reclamações como no momento hodierno; alguém sabia escrever, nada mais, sem que nem houvesse muitos dicionários, e os que não sabiam fazer uso da escrita se contentavam com a orientação do ‘cumpadre’, a quem agradecia muito ou poderia levar uma prenda (uma leitoa, um cabrito, e até um bezerro desmamado), além de costumarem barganhar, fazer a troca de uma mula por uma roça, de uma vaca parida por um touro, de um cavalo castanho por duas jumentas da raça pega.

Fechando toda essa lengalenga, tenho em mão o volume X da enciclopédia Thesouro da Juventude, em 18 volumes, capaz azul, escrita por volta de 1940, cujo Português, válido para o Brasil e Portugal, tem aspectos curiosos.

Espero o momento de ainda poder comentar vários trechos dessa linguagem neste site, mostrando o padrão gráfico, gramatical, semântico e estilístico da linguagem dessa época.

Sabemos dizer que tal coisa está incrustada. Isso é curioso porque usamos crosta terrestre. Ora, nesse caso, seria incrostada, mas assim não grafamos. E por que a grafia com crus? Porque nasceu de crusta, o mesmo que crosta, a grafia usual hoje. Paralelamente, existem crosta e crusta, variantes gráficas, mas esta se tornou arcaica. Não se vê em livros modernos a expressão A crusta terrestre está sofrendo com as intempéries e as atitudes humanas.

Antes, commum; hoje, comum. Nosso quase foi quasi, o que seria erro de grafia hoje. Paes adoptivos para pais adotivos. Observada a grafia paes, por isso, o sobrenome Moraes, tão difundido no passado, que ainda se conserva em alguns nomes (os Moraes), mas os cartórios tendem a registrar o sobrenome Morais.

Hoje, a forma mesoclítica (em que um pronome pessoal oblíquo é usado no interior da forma verbal, nos futuros do presente e do pretérito do indicativo) tem sido esquecida. Nos dias atuais, se usarmos será do modelo Dar-nos-á um futuro promissor, que nem se vê mais, e seria cafona. Nesse período bravo de 1940-50, seria charme e estava lá com ostentação: Dar-nos-ha (com agá e sem acento), sem que se reclamasse tanto como nos dias de hoje.

Attrahem para atraem; eu tinha creado em você para eu tinha crido em você; feros o mesmo que feroz; disputal-as igual a disputá-las; bronchios, brônquios; tracheia, traqueia (que já foi traquéia); columna, coluna; augmentar, o mesmo que aumentar; phocas, focas; creanças, crianças; sahido, saído; incubada (palavra que poderia ter cor pejorativa hoje), a incubadora, com a variante incubadeira; idade com a grafia edade.

‘A crusta vai a pouco e pouco perdendo o seu apoio e consequentemente vai-se contrahindo‘ (contida na página 2.996, coluna 1, desse tomo 10).

Abraços.

 

 

 

João Carlos de Oliveira

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