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A cada instante, um pleonasmo vicioso desce a bocaina e cai no ribeirão (sem ser notado?)

São muitos e nem sempre seriam notados.

A Gramática Normativa abomina o pleonasmo vicioso, dizendo tratar-se de mau uso da palavra no falar ou no escrever. Denomina-o vício de linguagem.

Os tradicionais já são conhecidos, e muitos riem quando alguém os usa sem perceber.

‘Vou descer lá pra baixo’ (notório exemplo cotidiano). E seu oposto, ‘Vou subir lá pra cima’, completa esse rol.

O pleonasmo literário, tão poético, e bom que fosse mais usado, não tem aparecido cotidianamente. Às vezes, há uma nesga de um ou outro por aí, mas a abundância, não.

Por que não dizer ‘Viver a vida divina‘, como quer o mestre Jesus. Nesse pleonasmo, temos o objeto direto pleonástico, ou cognato, por haver uma relação contínua de significados: o verbo e o seu complemento são da mesma família de palavras, ou família etimológica.

Algumas músicas, poesias, textos hilariantes e outros é que o usam.

Podemos citar alguns?

A vida, vivo-a como Deus quer.

Trabalho o trabalho de todo dia sem me queixar.

Compro a compra do necessário para não haver esperdício.

Parecida com esses exemplos, a frase ‘Vou ir com vocês‘ seria boa opção se contivesse um qualificativo. Como está, é simplesmente um pleonasmo vicioso, condenado, mas se lhe acrescentarmos um aspecto poético, será aceito de bom grado: Vou ir aí agorinha mesmo até você, meu filho, para conversarmos mais um pouco cara a cara.

Entre um pleonasmo e outro, não podemos olvidar o folclórico ‘Vejo tudo com estes olhos que a terra há de comer‘.

‘Ver com os próprios olhos’ é, de fato, emblemático, embora possamos ‘ver’, no aspecto de sentir, de perceber ou notar, com as mãos, os pés, os ouvidos. Nossos sentidos veem, e muito, sem ter a função principal da visão.

Frase redundante, mas dita pela testemunha, confirmando um fato, diante da autoridade, é enfática, e tornou-se tradicional: Vi com meus próprios olhos. Ou: Vi tudo com esses olhos que a terra há de comer.

Lembremos a estória, que não é anedota nem história de pescador, do cego que estava na esquina a pedir alguns óbolos. E passa um cavaleiro. Um próximo vê homem e animal, e expressa: “Que cavalo bonito!”.

O cego, atento, e ‘vendo’ o que girava no seu entorno, completa: “E gordo, meu amigo!”.

O homem que disse a primeira frase duvida do cego, ou duvida que o cego era ‘cego’, como se fosse ele um chantagista, mas não é isso nem o era.

O cego não ‘vê’, com os olhos, mas vê muito com os outros sentidos, usados com maior incidência ou ‘percepção’. Perdeu a visão, mas tem o mérito de saber usar com eficiência outras qualidades de seu organismo. Ao que parece, nenhum cavalo magro é bonito.

O poeta diria ‘Chora o defunto o choro da morte no seu último suspiro’, um pleonasmo literário de profundo teor, em que o objeto direto cognato, ou pleonástico, é notório: o choro da morte.

Quando alguém usa ‘Vamos buscar outra alternativa’, está usando pleonasmo vicioso. ‘Alter’ nessa palavra já significa ‘outro, outra’, e não seria percebido esse aspecto semântico quando se usa o combinado ‘outra(s) alternativa(s)’. O ideal seria ‘alternativas’, ‘mais alternativas’ para não se dizer o que já foi dito, que constitui pleonasmo vicioso, tão ruim quanto ‘descer pra baixo’, ‘subir pra cima’ etc.

Curioso é que o sabido riria do ‘descer pra baixo’, mas usaria ‘Eu sei buscar outras alternativas quando estou em dificuldades’. Essa visão caracteriza que o próprio defeito linguístico não é notado, mas o do outro, sim, pelo vício existente da ojeriza.

Num descuido, o escriba registrou ‘Aumentou o aumento da gasolina’, um pecado da vida econômica, mas poderia se salvar, passando de pleonasmo vicioso, não-aceito gramaticalmente, para o pleonasmo literário, aceito no texto de bela linguagem: Mais uma vez, aumentou o aumento descomunal da gasolina.

A linguagem cotidiana, em especial a falada, a que chamaríamos de coloquialidade da linguagem, é rica pela sua variedade, e através de um caminho torto notaríamos o certo, e mesmo por uma estrada sinuosa podemos alcançar o topo do morro. Nesse diapasão, vivemos o dia a dia.

Melhor assim que as repetidas ‘Vítimas fatais’ para dizer que houve ‘Vítimas de morte’ num acidente automobilístico, e poucos redatores têm percebido esse engano, e tascam ainda: Fulano corre risco de vida. Se o fulano está vivo, corre risco de morte, ou de morrer. Ou para aliviar, Sua vida estaria em risco. Tem a vida em risco.

‘O veículo caiu de uma ribanceira de uns 30 metros’.

Caímos de uma escada, caímos em um buraco, a aeronave caiu no mar, o animal caiu no poço de lama etc. Assim, o veículo, que estava na estrada, e não estaria pendurado num barranco, caiu na ribanceira de uns 30 metros.

Cair da ribanceira seria lógico para um ente que já estaria nela, pendurado, enganchado etc.

Melhor dizer, e assim seria mais claro, que ‘o veículo caiu barranco abaixo’, ‘caiu no vale’, como se cai de uma mesa, como caímos do telhado, e do nada ‘caímos’.

Curioso ainda dizer que ‘caiu no chão’. Tudo o que cai, cai no chão.  Precisamos, sim, dizer o que ou quem cai em certo lugar: caiu na lama, caiu no buraco, caiu na escada, porque ‘cair no chão’, também, é um baita pleonasmo vicioso, pouco percebido.

Para se entender bem o pleonasmo, basta que tenhamos em mente isto: repetição, em um comunicado, de palavras que têm o mesmo sentido. O maior cuidado é com o significado do termo, e não com a grafia. Não seria cabível admitir o pleonasmo somente com palavras da mesma grafia, ou da mesma família.

Prossiga para frente, meu filho! (Ninguém prossegue para trás.)

Se caso ele vier, não sairei. (Se e caso têm o mesmo significado. Use uma ou outra conjunção: Se ele vier… Caso ele venha. Acaso, ele possa vir…)

Desça lá embaixo e chame o porteiro. (Desça a escada e chame porteiro. Desça e chame o porteiro.)

Vamos, contudo, chamar a atenção do pleonasmo estilístico, ou literário, a que também se pode chamar poético, com grande efeito de embelezamento, que realça a ideia.

“A serra do Rola-Moça/ Não tinha esse nome não. (Mário de Andrade)

“Tu não me enganas, mundo, / e não te engano a ti. (Carlos Drummond de Andrade)

Lembre um pleonasmo vicioso que o professor deu em sala de aula, mas crie um literário para enviar a sua namorada: Amo-a com o amor que tenho em mim (e não o amor citado em programa televisivo).

Obrigado por ter estado aqui.

João Carlos de Oliveira

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