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Alguém teria dito “Eu tinha trago tudo comigo” (sic). ‘Trago’ pode ser o particípio do verbo trazer?

Sim, sabemos que dúvidas existem, mas essa não seria um erro crasso em se tratando de ser usada por pessoa culta?

Um artigo sobre livros, em feira especializada, alguém letrado teria escrito “Por ter trago (…) pessoas para participarem da feira” (sic), cuja sequência traz informações sobre a História e outros fatos.

O verbo trazer no presente do indicativo, na primeira do singular, de fato, tem essa forma tão popular: Eu trago (tu trazes, ele traz, nós trazemos, vós trazeis, eles trazem), conjugação irregular, mas ‘fácil’ de ser entendida e muito conhecida, como também usada.

O pretérito-perfeito do indicativo é que altera por completo o radical desse verbo: eu trouxe, tu trouxeste, ele trouxe, nós trouxemos, vós trouxestes, eles trouxeram.

Curioso dizer que ainda há quem use ‘Eles trazeram tudo no lombo do curro’, similar a se dizer ‘chegaram, fizeram, vieram’. Não seria difícil se ouvir ‘Nós trazemos as coisas de nossa casa na roça quando mudamos para a cidade’, enunciado que estaria no passado, e seria ‘Nós trouxemos as coisas de nossa casa na roça quando mudamos para a cidade’. No futuro do presente, pode-se ouvir ‘Eles fazerão‘, mesmo que a Gramática Normativa diga que verbos terminados em -zer, no futuro do presente e no futuro do pretérito, perdem ze: eu farei, tu farás, ele fará, nós faremos, vós fareis, eles farão; eu faria, tu farias, ele faria, nós faríamos, vós faríeis, eles fariam. Eu direi, tu dirás, ele dirá, nós diremos, vós direis, eles dirão. Eu diria, tu dirias, ele diria, nós diríamos, vós diríeis, eles diriam. Seguem esse modelo todos os verbos derivados de fazer (refazer, contrafazer etc.) e dizer (redizer, contradizer etc.).

É do conhecimento de muitos que ‘trouxe’ circula com uma pronúncia inusitada, cujo x vem a lume com o valor de ch, o que não é aceito pela norma culta. Esse xis tem o valor fonético de ss, tal como pronunciamos gramaticalmente auxílio, auxiliar, Auxiliadora.

Não confundamos essa pronúncia com a de xale, xícara, nem com a de anexo, nexo, reflexo, crucifixo.

Nem seria a fonética de exato, exame (este sofre!), exímio.

Podemos lembrar que x após o ditongo tem valor de ch, fato popular, e ninguém erraria: faixa, caixa, caixote, encaixar, feixe, do mesmo jeito que se pronunciam as palavras mexerico, mexerica, mexeriqueira, enxerido, enxerto.

Esses lembretes preceituam que o xis é diversificado, com vários tons em sua pronunciação, chegando a seis valores fonéticos: ss (trouxe), ch (xadrez), z (exercício), cs ou ks (amplexo), s (explícito) e mudo (exceção).

Fora Eu trago, de trazer, temos trago, primeira pessoa no indicativo presente de tragar (Quando fumo, eu não trago), e trago, substantivo masculino, com o significado de gole, quantidade de bebida (porção de líquido) que se toma de uma só vez. Sorvo, hausto. Diz-se,  figuradamente, que ‘trago’ é aflição, adversidade, obstáculo.

Ainda, trago, ou trágus, substantivo de dois gêneros, denomina ‘a cartilagem saliente triangular situada à frente do conduto auditivo externo’ (deformidade que deve ter nome popular, como calombo). A Medicina tem suas denominações; a linguagem popular, outras.

Corrigindo o caso citado na introdução, devemos usar trazido.

Eu tinha trazido toda a bagagem que possuía numa pequena mala de couro.

Se fosse correto se dizer ‘Eu tinha trago’ (em tempo composto de trazer), caberiam também ‘Eu tinha chego’ e ‘Eu tinha compro’, algo estranho para a linguagem culta, mas ‘modelo popular’ que pode ser encontrado. Não use Eu tinha falo (equivalente a Eu tinha falado). Eu (ele) tinha falo, mesmo estranho, está correto para se dizer que alguém tinha o órgão sexual masculino e o teria decepado. Dizem que um indiano, insatisfeito com atos sexuais e supostamente que a esposa o recusava para essa prática, veio a decepá-lo com uma faca afiada. A cirurgia de reposição foi tentada, mas não deu bom fruto.

Também, não se deve confundir ‘Eu tinha trago’ como se fosse do verbo tragar; desse, no tempo em que caiba, deve-se dizer ‘Eu tinha tragado’. Tragar é verbo usado quando pessoas se referem ao ato de fumar, mas pode ter a conotação de ‘fazer desaparecer, engolir’, em catástrofe ou avalanche: A enxurrada tinha tragado tudo que encontrou pela frente.

A fumaça do cigarro foi tragada (engolida) pelos presentes, tantas as vezes que o fumante o acendeu. O poeta foi tragado pelo vulcão.

Outras conotações são evidentes conforme a região de uso.

Conclusão a que se chega é que ‘tinha trago’, no lugar de ‘tinha trazido’, teria influência de verbos clássicos do nosso idioma, usados na linguagem culta como na popular e na coloquialidade: Eu tinha vindo, eu tinha dito, eu tinha falado. Eu tinha visto, eu tinha ido, eu tinha feito. Esse ‘o’ final da forma do particípio não indica a primeira pessoa do singular (eu vendo, eu vejo, eu compro). Serve, sim, para caracterizar o aspecto masculino do particípio de um verbo, forma nominal, ao lado do gerúndio e do infinitivo. O particípio, versátil que é, pode tornar-se substantivo: o dito, o feito, o falado, ou ter valor de adjetivo em frase na voz passiva analítica: O caso foi dito, a história foi dita; o fato foi narrado; a história foi narrada.

Para fechar, a comparação, que seria pouco aceita ou comentada:

Se estamos aqui, para chegar lá, devemos dizer ‘O objeto será levado’ até um lugar: O corpo será levado para a cidade natal do falecido.

Se estamos lá, para chegarmos aqui, devemos dizer ‘O objeto será trazido’ até este lugar: O corpo foi trazido da cidade onde aconteceu o sinistro fatal para a terra natal do deputado, onde se deu o sepultamento.

Nesse momento, é que pessoas têm dúvida e podem chegar ao ponto de usar ‘Tinham trago o corpo para sepultar na cidade em que o homem morava’, como alguém teria comentado.

Mesmo que esse ‘trago’ seja normal em linguagem popular de longas datas, ainda assim, ‘arranha’.

Quem estudou o verbo trazer, se o usa assim, se esqueceu da regra; e quem não o teria estudado, considera normal esse uso, por isso o jornalista teria escrito ‘Por ter trago (…) pessoas para participar do evento’, no lugar de dizer e escrever ‘Por ter trazido (…) pessoas para participar do evento’ (aqui no Brasil), vindas de Portugal.

Outro fato que condiciona alguém a usar ‘tinha trago’ como ‘tinha trazido’ é que o último soa estranho ou é feio!

Um abraço.

 

João Carlos de Oliveira

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